quinta-feira, dezembro 19, 2013

Contas certas

 
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
 
Millôr Fernandes in Poesia Matemática

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Caro


A multidão acotovela-se, carinho natalício praticamente sincero com promoção de até 50% . E eu por aqui, tentando escrever e enganar o sono com os meus óculos de 4 €. Acho que a compaixão este ano está até 70%, vejam só, anunciava-se página inteira daquele jornal gratuito. Assim esgota-se num instante. E eu aqui parada, a escrever, auxiliada pelos meus óculos de 4 €, armação irrepreensível, lentes com uma dioptria cada. Por esta hora embrulham-se, em longas filas, azedumes e invejas, laçarotes de veludo, embalagens atractivas mas, infelizmente, não recicláveis. É preciso tirar a senha, esperar com uma paciência sem qualquer promoção, só lá para meio de Janeiro talvez lhe retirem 20% no máximo. Quantas pessoas foram exploradas para eu pagar 4 € por uns óculos numa loja clean de origem nórdica? Reparo que no fim do túnel há finalmente umas luzes led de Natal. Feitas exactamente no mesmo sítio que os meus óculos. Mais quinze dias, se tudo correr como habitual, e regressa a escuridão. Pensando bem, 4 € nunca custaram  tão caro.

Too big

 
 
Too big to fail

Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
-valias, ainda por cima livres de impostos?

Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
... sensíveis aos meus parcos activos emocionais.

O mais estranho, no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.

O meu único receio é que despertemos
a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,

deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com a sua mão invisível. E mesmo

que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.


José Miguel Silva, 2011

segunda-feira, dezembro 02, 2013

Alívio rápido

Alívio Rápido


A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


Carlos Bessa in Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007.

sexta-feira, novembro 29, 2013

Guia

Num destes dias, no metropolitano de Lisboa em plena hora de ponta de fim de tarde, viajei na mesma carrugem que uma senhora cega que se fazia acompanhar pelo seu cão-guia, um labrador delicioso cor de chocolate. Coincidiu sairmos no fim daquela linha, estação confusa, interface de outros destinos. Segui-os sem guardar qualquer distância como um bom detective rasca. Cuidadosamente o cão livrava-a de todos os males da plataforma: bancos, caixotes do lixo, publicidade encafuada em montras salientes. Infelizmente só não cumpriu com total sucesso a sua missão porque três pessoas chocaram com eles, três pessoas que andavam furiosamente em sentido contrário, alienadas ou enviando compulsivamente sms. Pessoas que não saltaram aquele obstáculo e ficaram indignadas ou surpreendidas pela incapacidade de ele se desviar. Depois as escadas, primeiro só uma opção, depois, no piso superior, o labrador conduziu-a de imediato às rolantes. À saida ambos cruzaram calmamente o portal mais largo não sem antes o cão-guia se ter sentado e forçado a companheira-dona a retirar o passe do bolso. Perdi-lhes o rasto mas aquela visão de fim de tarde guardo-a comigo. Estar atento, cuidar, observar o que nos rodeia. Simples e, contudo, raro.

quinta-feira, novembro 28, 2013

Coisas que sei desde sempre


Teorema

Todas as coisas mentem a um olhar severo.
Vasco Gato

terça-feira, novembro 19, 2013

uma borboleta

Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros,
e a poesia ou a litteratura uma borboleta que,
poisando na cabeça, me torne tanto mais ridiculo
quanto maior fôr a sua própria belleza.

Fernando Pessoa in Livro do Desassossego.

segunda-feira, novembro 18, 2013

Conta-me uma história

Há pouco lia este post do "Horas Extraordinárias" - o blog da Maria do Rosário Pedreira - que me transportou para a infância, para o tempo em que ainda não lia mas sabia de cor todos os livros infantis que existiam lá por casa. O meu pai, após dez horas de trabalho, chegava a casa cansado, uns dias desiludido, outros distraido, outros ainda ansiando um futuro tranquilo, sem obrigações ou pressões. Dizia, chegava a casa, comia qualquer coisa ligeira enquanto eu fingia dormir. Assim que ouvia passos no corredor, saltava da cama, carregada com o livro escolhido, e invadia o seu quarto adiando o momento de tranquilidade. Depois, já sentados na cama dele, lia devagar a história eleita, frequentemente as suas mãos eram sombras chinesas, o passe de mágica para cães, gatos, papagaios, fantasmas, avózinhas, soldados aparecerem nas paredes e no tecto. Havia dias que, extenuado, tentava encurtar as aventuras mas a minha memória das histórias, repetidas sem fim, atraiçoava-o.
É assim, talvez sem querer, que se planta num filho o amor pela leitura, pelo mundo ficcional que também é o nosso. Constato que só 2% das familias seguem ainda o exemplo do meu pai - e não digam que os tempos são outros: a atenção e a pedagogia são intemporais. Temo por isso pela língua portuguesa e pelas crianças que não fazem ideia que poderiam ser muito mais felizes.

domingo, novembro 17, 2013

Greve Geral às Segundas-Feiras


Greve geral
 
Logo de manhã apanho o autocarro para as nuvens
no largo que fica ao fundo da minha rua, com uma
árvore de cada lado da e corvos amarelos
na ponta de cada ramo. Quando entro, o motorista
pede-me o bilhete; mas não o encontro nos bolsos,
nem na carteira, nem no meio de todos os papéis
que levo nas mãos, e ele manda-me sair. "Como
poderei chegar às nuvens?", pergunto. E ele aponta
para o banco da paragem, onde está um grupo
de musas que passaram as noites nos bares, e
cabeceiam com o sono de terem andado de um
lado para o outro, sem descanso. "Sabem onde
se compra um bilhete para as nuvens?", pergunto.
E elas apontam para o guiché que continua fechado.
"É por isso que os autocarros saem vazios daqui"
diz uma delas na língua do Olimpo. Sento-me
ao seu lado, e escrevo um poema sem saber que é
ela que o está a ditar. Mas ela tirou-me
o poema das mãos e passou-o às amigas: "A qual
de vocês se destina este poema?" E cada uma delas
olhava para o lado, como se não tivesse nada a ver
com aquilo. Quando acordei estava sozinho,
as musas tinham-me levado o poema, e no vidro
da paragem tinham posto o aviso: "Não há
autocarros para as nuvens: dia de greve".
 
Nuno Júdice in Navegação de acaso, 2013.

sábado, novembro 16, 2013

As Horas Extraordinárias



Todo um ano cheio de horas extraordinárias. Agora, por incrível coincidência, cruzo-me comigo frequentemente ao anoitecer. Lá dentro há uma luz imensa, ganho coragem e espreito-me, parece acolhedor: mobília a contar histórias, quadros serenos, livros que se acotovelam nas estantes, alguém, entre janelas, prepara o jantar. Noto que retirei cortinas, no seu lugar violetas, amores-perfeitos, cíclames, sardinheiras.
(...)
E assim que volto ao meu lugar
reencontro com dor e com prazer
o coração que fiz falar
à máquina de escrever, a ver
ela a dar corda à máquina de amar
e um coração a se amainar, só
quando aparte o amor
eu me vi só
atirando a moeda ao ar
diz-me que cara ou coroa
eu vou ganhar
diz-me quanto eu fiz bem
em me apostar
e que bem fiz em ter por necessárias
as horas extraordinárias.

terça-feira, novembro 12, 2013

entre amigos

Pequenos crimes entre amigos


Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.

Podes até queimá-lo –
com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.



Inês Dias in Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.

segunda-feira, novembro 11, 2013

Uma espreitadela

Para animar a vossa segunda-feira, vejam o que o britânico BANKSY, o artista do momento, andou a fazer por Nova York durante o mês de Outubro, numa espécie de atelier urbano undercover!

quinta-feira, novembro 07, 2013

Afogada em papéis

Reúno finalmente todos os meus papéis. Debaixo de água. Tenho esta dificuldade em facilitar a minha vida. Não é genético. Não é masoquismo. Não é possível. Reúno aqui os meus papéis na baía mais tranquila que encontrei. Anémonas iluminam as estrofes, as metáforas, os espantos. Desfaz-se a prosa poética na corrente mais ao fundo. Um cardume de salemas embate de frente no meu sonho de publicar. Aqui ninguém se magoa, tudo flui. Prossigo com as longas barbatanas azuis para uma rocha vizinha onde, espantados, dois olhos de qualquer coisa que por ali habita acham-me a mais pura ficção científica. Descanso, reescrevo, encurto, admiro, desprezo. As algas empanturram-se desta sopa de letras. Linha a linha segue, já um pouco cansada, a minha escrita reunida e diluída. Subitamente, a sintaxe medíocre deixa-nos - a mim e à garrafa - sem ar. Lá em cima o casco do barco, o sol. Aqui em baixo, já um pouco arroxeada, eu reunindo finalmente os meus papéis.

quarta-feira, novembro 06, 2013

Como um idiota responsável

No metro, em pé, ainda a acordar no abafo subterrâneo
da manhã. Repórteres cansados de uma realidade
que passa por nós em diferido e só acaba gravada
nos álbuns de viagens dos estrangeiros
que nos apanham nestas rotinas de segunda classe
quando engolimos os piores, mais espessos silêncios.

Tão depressa penso em nada como já sei tudo.
Quis ser estrela de rock, actor de cinema,
todos os sonhos mais baratos já foram para a cama comigo.
Depois, como putas sem alma, deixaram-me
a falar sozinho. Agora ajeito-me à ideia
de vir a ser um advogado. E que triste vou ser.
(Chego à minha paragem, volto à superfície
e os passos destrocam-se até chegar à Faculdade.)
Só me inspiram os escritores que regressam a casa
constantemente debaixo de chuva – mesmo que não chova –
acompanhando sombras migratórias
contra um placard que cospe sequências animadas
em technicolor. É bom saber que somos muitos,
nós que temos a vida engasgada entre golpes
publicitários. Já viste o novo da Super Bock?

(Uma aula, duas, três... Foda-se.)
Deixaremos a morte reduzida a escrito, convulsa,
com todos os finais prováveis, inglórios, mas
razoavelmente musicados. Sem surpresas,
alguma avaria no engenho explosivo a que chamámos
coração, essa fraude mediática. O meu,
mergulho-o no óleo da fritadeira, deixo-o alourar
– para mim quero um enfarte amoroso, mesmo que
tenha de lá chegar por excesso de colesterol.

(Hora de almoço. E agora o que é que me apetece?)
Quando nada me move, a caneta vai-me desapontando,
a colher a mexer o café, afogando um mosquito.
Li uns vinte e cinco poemas à hora do almoço
enquanto escrevia notas nas costas das mãos
– mais outro texto que só poderá dar em nada
com toda esta sucata que encalha nos meus versos.

Mutilo-me, deixo-me ir ao chão, fabrico
próteses, levanto-me e sento-me novamente,
reescrevo-me, emendo a estupidez dos deuses.
Daqui a nada pago a conta, vou ao W.C.,
tento urinar nos limites da sanita (cuidados
que «a gerência agradece») e depois volto às aulas
como um idiota responsável.

P. S.: Não leias este uma segunda vez, amanhã é igual.


Diogo Vaz Pinto in Resumo: A poesia em 2011 [de Nervo], organização de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2012

segunda-feira, outubro 28, 2013

quarta-feira, outubro 23, 2013

Gostar

Fernando Pessoa escreveu
gostava de gostar de gostar
eu gosto de gostar
tenho sorte


Adilia Lopes in Andar a pé, Averno, Lisboa, 2013.

segunda-feira, outubro 21, 2013

África minha

Escrevo-te de novo da selva. Numa clareira de tempo em que o gerador, e tudo o mais que permite escrever e-mails, funciona. Ainda não vi cobras nem chimpazés nem outras coisas que me lembro quando criança no Zimbabué. Só vi árvores imensas, densas, sem idade. Só vi cursos de água, tímidos ou dominando aldeias e suas tribos, só vi casas em ruinas, pagnes coloridos amarrando crianças às suas mães que trabalham incessantemente, só vi pés descalços, armas enferrujadas, estradas, acampamentos, vidas, tudo enlameado. Já quase me esqueci do deserto e da maresia, este cheiro húmido afoga-me a alma. Na verdade, acho que criei memórias falsas na minha infância, tudo me parece muito diferente do que sempre te descrevi com um entusiasmo, constato agora, exacerbado. Escrevo-te, contudo, porque há uma certeza surpreendente que me invadiu hoje: ias gostar muito mais disto que eu. Ias entender a linguagem gestual dos carregadores, trocarias cumplicidades fundadas num passado que não poderiam ter em comum. Dar-lhe-ias a nossa Coca-cola. Alguns homens evitariam falar com os teus olhos, por respeito ou por desprezo, mas isso nunca seria um entrave nas negociações, nas obrigações, nos pequenos gestos do quotidiano. Arranjarias outra maneira. Imagino que aprenderias puericultura indígena e provarias condimentos da culinária local para os quais ninguém ainda teve coragem. Talvez nós aqui, cheios de educação, de experiência internacional e de espirito colonialista devidamente amordaçado pela antropologia contemporânea, saibamos melhor lidar com jipes atolados, com computadores exaustos de calor e humidade, com répteis ou com os insectos contra os quais fomos (e não fomos) vacinados. Mas para lidar com as pessoas... Faltas cá tu.

quarta-feira, outubro 16, 2013

Não se pode morar nos olhos de um gato



Para encerrar as constatações de um dia importante como o de hoje.

desarrumação

Há palavras duras, áridas que guardo num canto visível, amarradas a memórias do passado e a impulsos combatidos no presente. Essas palavras entristecem-me, quando as olho, lembram-me as bocas, os gestos, o tom que deixaram para trás ao libertarem-se dos outros.Lembram-me o leito das veias descontroladas onde correram ou os icebergs onde foram hermeticamente conservadas.Lembram-me ainda o brilho dos olhos coléricos, maldosos, invejosos, egocêntricos, muitos por mim amados sem nunca terem podido retribuir nada mais que dias e dias idílicos, ficcionados nas histórias perfeitas que vou inventando sobre a minha vida. Essas palavras têm arestas, cortam como o papel, esmagam como cilindros de aço, esforçam-se para destruir os oásis que planto no deserto das más recordações. As de origem freudiana abandonei-as já no fundo do baú dos brinquedos de infância que sobraram quase intactos. As outras são da minha total responsabilidade, já não tenho desculpas para toda esta desarrumação.

terça-feira, outubro 15, 2013

De outro modo

Num dia em que um grupo de pessoas muito desastradas insiste em fazer bricolage e remendar Portugal, encontrei duas notícias peculiares que nos obrigam a pensar de outro modo:
A arte só tem valor quando é anunciada?
Há incompatibilidade entre o poder e a marmita?

A frase

Há anos que procurava a primeira frase para um romance. Encontrara várias, nunca couberam devidamente naquelas linhas que lhes havia reservado. Não a encontrar sempre fora a desculpa perfeita para não escrever o resto do romance que lhe sufocava a vida desde que nascera para o mundo das histórias. Há muito que tropeça em palavras que lhe barram saídas, se espalham pela casa, lhe desarrumam das gavetas, encostam-se a todos os cantos da sua vida e esperam a vez de serem usadas. Por vezes tornam-se demasiado reivindicativas as palavras, manifestam-se em conjunto ou isoladamente, fazem exigências, querem melhorar de vida, querem conquistar o mundo dos outros. Por isso, frequentemente, tapa os ouvidos, aliena-se em delirios académicos, em futilidades e em pequenos dramas diários. Contudo, agora, ali estava aquela frase, mesmo à sua frente. Ignorá-la seria apagar para sempre o seu maior sonho, ignorá-la seria transformar-se de vez na naquela pessoa que muitos julgam que é. Chegou a hora de avançar. De escrever aquela frase no inicio de si.

segunda-feira, outubro 14, 2013

Desenhar a infância perdida

Hoje, no jornal Público, a fabulosa história de Juan Zero, o carttonista sirio que se dedicou ao projecto de criar um estúdio perto de cada campo de refugiados para que se criem "ferramentas de comunicação diárias e directas com as crianças (...) apagando a cor do sangue dos seus olhos e diminuindo os sons da guerra na sua memória, numa tentativa de reactivar a infância perdida".

quinta-feira, outubro 10, 2013

Problema dentro


Um problema que não é, infelizmente, só meu dentro de um das minhas músicas preferidas, interpretada agora pela maravilhosa Sara Tavares.

quinta-feira, setembro 26, 2013

Dentro

Há dias, como o de hoje, que sonhamos voltar lá para dentro.

A Ana quer

A Ana quer
nunca ter saído
da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem,
mas na barriga também
era divertido.

O coração ali à mão,
os pulmões ali ao pé,
ver como a mãe é
do lado que não se vê.

O que a Ana mais quer ser
quando for grande e crescer
é ser outra vez pequena:
não ter nada que fazer
senão ser pequena e crescer
e de vez em quando nascer
e voltar a desnascer
a Ana quer.

Manuel António Pina in O Pássaro da Cabeça e mais versos para crianças, Assírio e Alvim

terça-feira, setembro 24, 2013

Monumento

Porque há poucas palavras para os programas eleitorais autarquicos com que me deparei.

quarta-feira, setembro 18, 2013

Desaparecer

Desaparecer. Era esse o verbo-chave, o verbo-urgência, o verbo-mestre. Impunham-se sobre ele verbos mais corriqueiros como fazer ou chegar, sufocavam-no adjectivos que atafulhavam o quotidiano urbano. Desaparecer, era a primeira palavra que murmurava quando acordava, a última com quem congeminava antes de adormecer. Este verbo nunca cabia nos seus sonhos, pequenos e freudianos, ele era da realidade e estava em tudo o que fazia contrariada, nas palavras que deviam ser evitadas, na barreira onde esbarravam os “e se…”. Rapidamente tornou-se arquitecta da fuga, desenhou uma fonte única para este seu verbo. Devagar cumpriu minuciosamente os passos definidos, fechou ciclos, declarou, ainda que subtilmente, todos os amores e desamores. Poucos acreditaram que o faria, ninguém atentou o tempo suficiente para entender que o plano estava em marcha. Um dia encontraram casa vendida, contas pagas, secretária vazia. Nesse dia, algures, durante a longa viagem que é desaparecer, ela finalmente conjugava todos os tempos do verbo com um sorriso enorme, um sorriso sem sombra de medo.

segunda-feira, setembro 16, 2013

Voyeurismo

Na minha mala há uma carteira com muitos trocos e cartões igualmente inúteis, um saco de toalhetes, uma pequena bolsa contendo coisas que queremos disfarçar com um padrão kitsch de sapatilhas de bailarina entrelaçadas, um moleskine que devia estar já atafulhado de palavras, um porta-chaves esgotado com um ouriço-cacheiro idoso que veio de longe e tem um ar muito cansado, um livro para nunca me entediar, uma pasta transparente com artigos com leitura adiada até ao limite da insanidade, um cartão mágico que permite, em parceria com as minhas pernas, deslocações mais ou menos lúdicas, um cinto para trocar que ficou péssimo naquele vestido, um pêssego amassado, uma conta para pagar, um bilhete amputado de um filme que não devia ter visto, um telemóvel à prova de gente chata e de má música, o peso e a leveza dos meus dias.  

sexta-feira, setembro 13, 2013

sentença para nadar

Agora imagino-a nadando numa piscina em alemão, a língua que ama. Palavras compridas, imensas, cheias de significado perante as suas braçadas que julga inseguras. Nadar é um enorme prazer que deve disfarçar com o esforço bem simulado. Debaixo de água é o paraíso, um útero, a paz clorificada, a purificação antes da Salah. À tona desce ao Inferno da discriminação. Quase todos se afastam e comtemplam a sua diferença com desdém murmurado. Conforta-a saber que estes são os planos traçados por Deus. Em breve saberá o sentido de toda aquela imbecilidade humana ou quiçá divina. Talvez se revolte, talvez aceite e se radicalize, talvez se refugie na indiferença, qualquer opção a fará renascer. Por ora é só uma criança que gosta de aprender, uma criança secretamente aquática e livre. É fácil distingui-la no meio de todas as outras, excitadas pelo estado líquido do meio: é a de burkini preto, a que nada silenciosa e veloz.

quinta-feira, setembro 12, 2013

Hoje

Durante muito tempo esperei. Um sinal,
um breve tumulto, cá dentro ou aí fora.
Durante muito tempo tive a certeza.
O absolutismo da certeza que cega os sentidos.
Durante muito tempo esperei serenamente,
recostada no idílico conforto dessa certeza.

Hoje não me demoro mais em nenhum deserto,
atravesso os oásis: bebo água, semeio esperança,
adivinho ventos favoráveis.
Hoje as dúvidas comandam as minhas tropas,
rendidas ao encanto dos campos minados
e das trincheiras de confidências.
Rendidas ao silêncio tranquilo do fim de batalhas ganhas e perdidas.
Rendidas aos pequenos territórios conquistados
territórios que sempre me haviam pertencido.

Dificuldades em ser a tempo inteiro



Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois levanto-me tarde e primeiro há que lavar
os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar por fim a casa para a prosa
de uma carne à jardineira, o estrondo
das notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só por volta das duas da manhã começo a despir
o fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.

José Miguel Silva in Relâmpago, n.º 12, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2003

quarta-feira, setembro 11, 2013

Em casa

Amor como em casa


Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no amor como em casa.

Manuel António Pina in Ainda Não É O Fim Nem O Princípio Do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde (1974)

terça-feira, setembro 10, 2013

Lição

"Apercebi-me de que era necessário retirar uma lição mais complexa, uma lição que pudesse jogar com as imcompatibilidades do amor, conciliando a necessidade de sabedoria com a sua provável ineficácia, conciliando a imbecilidade da paixão com a sua inevitabilidade. O amor tinha de ser apreciado sem cairmos no optimismo ou no pessimismo dogmáticos, sem construirmos uma filosofia dos nossos medos, nem uma moral das nossas decepções. O amor dava ao espirito analitico uma lição de humildade, a lição de que, por mais que ele lutasse para alcançar certezas inabaláveis (numerando as suas consequências e agrupando-as em séries bem definidas), a análise conteria sempre erros - e, por conseguinte, nunca se afastaria muito da ironia."
Alain de Botton in Ensaios de Amor, Dom Quixote

segunda-feira, setembro 09, 2013

A tranquilidade


O Mordomo – tradução literal do título original – é um filme que, à semelhança de “Cor Púrpura”, “Malcom X” ou de “As Serviçais” retrata o apartheid institucionalizado de uma democracia que se autoproclama madura, um apartheid que ignorou a abolição da escravatura e que vigorou oficialmente até ao meio da década de 60 do século XX mas que, efectivamente, se prolongou, na penumbra da subtileza, por muito mais tempo. O nosso Mordomo serve os Presidentes dos EUA, de Eisenhower a Reagan, com a tranquilidade institucionalizada da diferença. Luta, por décadas, com o filho, um defensor incorrigível dos Direitos Civis e do Direito de Voto, luta contra a igualdade de que está certo de lhe ser devida. A história da segunda metade do século passado daquele pais e este homem confundem-se: entre o abismo e o orgulho, a dignidade e a revolução paira sempre o absurdo de como a natureza humana é volúvel, inescrupulosa, cínica, displicente. A estoicidade com que se arma para enfrentar a sua dura vida, o que fica do que passou, a tranquilidade do seu renascimento já tardio conduzem-nos a um final que não poderia ser mais feliz.

sexta-feira, setembro 06, 2013

Por vezes



E por vezes as noites duram meses.
E por vezes os meses oceanos.
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos.
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos.
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira

quinta-feira, agosto 29, 2013

Uma cura



Ontem lembraram-me disto. Da intemporalidade da poesia e de como este senhor me ensinou a amá-la e a não esquecer que o humor refinado é um desafio, uma defesa, um tsunami, uma cura.

terça-feira, agosto 27, 2013

Sou da invencionática

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.
 
Manoel de Barros

segunda-feira, agosto 26, 2013

Depende

A nossa capacidade de felicidade depende de um certo equilibrio entre o que a nossa infância nos recusou e aquilo que ela nos deu.
Jean-Paul Sartre

Lenda do Ouriço

A escrava Agar, quando Abrãao a expulsou da casa juntamente com Ismael, filho de ambos, partiu para o deserto com o coração destroçado. Um dia, quando morreu, o seu coração saiu do corpo: estava transformado num ouriço-cacheiro. Um coração cheio de espinhos para que ninguém o pudesse tocar. Ainda hoje, os nómadas do deserto de Neguev, descendentes de Ismael, acreditam que os ouriços-cacheiros nascem quando alguém sofre um desgosto de amor eterno.

Afonso Cruz, Enciclopédia da Estória Universal - Recolha de Alexandria, Ed. Alfaguara

sexta-feira, agosto 23, 2013

automaticamente

Tudo o que poderia ser mas não é. Mas se não é, não há nada a fazer. O condicional rasteira-lhe sempre os pensamentos. Impede-o de pensar clara e objectivamente. Se tivesse sido, hoje era. Mas não é. E projecta para o  futuro. Aventura-se. Ainda pode ser. Talvez, mas será sempre diferente. Logo não é. Será outra coisa, uma que ele desconhece. Uma outra coisa que ele não sabe se pode confiar. Um aperto, uma angústia. Um risco. Urge uma conclusão que pacifique. Se poderia ter sido e não foi é porque não era para ser. O refúgio neste oráculo oco em que não acredita. Um respirar fundo de conformação. Retoma com afinco a página que descreve um esplendoroso vinhedo junto ao Douro. Um alívio invade-lhe os pensamentos rasteirados que, exaustos, rendem-se a um precipício sem fim. Ao virar da próxima página a esperança apagar-se- à automaticamente.

tristeza


A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.

A minha tristeza
é a do astrónomo cego.

Mia Couto

proibido proibir

Ontem, finalmente, fui ver as "Paixões Proibidas" (Two mothers), um filme belo. Se fosse realizadora seguiria a linha da francesa Anne Fontane, se me transformasse numa directora de fotografia seriam estas as cores que daria ao ecrã, se fosse escritora este seria eleito um tema-fetiche. Baseado num conto de Doris Lessing - história verídica que lhe é relatada numa certa ocasião - este filme propõe que pensemos sobre o que é,  o que sempre foi, na verdade, uma familia, quais os nossos limites morais e éticos perante relações tão fortes que vão muito além das palavras. Um filme que agita e que embala.

segunda-feira, agosto 19, 2013

Nascer para ser árvore

Vale a pena sair de Lisboa por muitos e bons motivos, apesar de Agosto a tornar uma cidade encantadora. Sábado, num belo passeio para os lados de Cascais, vi a excelente exposição sobre Maria Keil patente na renovada e belissima Cidadela de Cascais. De bónus consegui ainda participar numa visita ao Palácio da Cidadela, um edificio surpreendente. A certa altura, aquando da breve explicação para um dos módulos da obra de Maria Keil, podia ler-se o seguinte:
"Quase sem querer propôs uma ética: cada personagem, cada um de nós, se estiver atento ao que o rodeia, nasce para ser árvore dançando no meio da praça".

segunda-feira, agosto 12, 2013

Taxi driver


Quando um primeiro ministro resolve ser condutor de taxi por um dia para ouvir mais de perto as queixas e sugestões do seu eleitorado. E se fosse em Portugal?

terça-feira, julho 23, 2013

Expediente



São nove horas. Começou o expediente da praia. Está tudo alinhado para receber os respectivos funcionários que só costumam aqui trabalhar zelosamente  nos meses de Julho e de Agosto. Os mais empreendedores arriscam Junho e Setembro. Ele chega confiante e carregado com uma imensa geleira da cor do mar. Livra-se da t-shirt e dos chinelos e faz alguns exercícios que não sabe serem alongamentos. Vai à babuja ver as vistas e agora, imóvel na espreguiçadeira, lê o Correio da Manhã. Chega ela apascentando os dois filhos, um pré adolescente e uma pispineta de uns seis anos cheia de respostas e de perguntas que ainda não tem coragem de colocar. O filho, entediado, ouve música a manhã toda no mpqualquercoisa e a miúda encarna uma espécie de Hello Kitty veraneante. A mãe, sempre em silêncio, passa creme protector e dá comida ciclicamente a todos. Sentada observa os biquinis das mulheres mais novas e o comportamento das outras esposas. Sossega as suas inseguranças e volta ao ciclo da alimentação. A meio da manhã chegam os sogros. Mais morenos, mais gordos, mais faladores. Estão dispostos a aproveitar todos os minutos que lhe restam. Trocam ideias acerca da hipótese do submarino americano ter contaminado as águas das praias de Lisboa, dos jogos particulares do futebol de início de época, da música no bar dos “bifes” que estava mais alta que nunca e constatam que as sardinhas de ontem que não eram grande coisa. As mulheres não falam entre si. Entretêm-se a ignorarem-se mutuamente e a zelar pela sua prole. Entretanto é meio dia e meio e o expediente da praia interrompe-se. Há entremeada para assar na varanda da casa alugada sem vista para o mar. Há um movimento de saída pela ordem inversa. Vão os sogros à frente preparar o petisco, a mulher certifica-se que está tudo vestido e arrumado, filhos devidamente contrariados com o horário daquele expediente. Carregada, faz-se lentamente ao caminho mas tropeça nas bolas de Berlim do vendedor moreno de voz doce, com quem tem fantasias diárias, e não resiste. Cinco sem creme. Esquece-se sempre de comprar uma para a sogra. Ele fica ainda na espreguiçadeira a acabar de ler a secção de desporto. Controla as horas, dá um último mergulho, exibe a pouca forma que lhe vai restando e aproveita a meia hora que se segue de bronze algarvio. Sonha com a entremeada, as minis e a soneca silenciosa até às dezasseis, hora em que o expediente da praia recomeça. Tem a certeza que a felicidade é isto, cada um cumprir escrupulosamente as suas obrigações, a comida, o senso comum, as sonecas, o futebol, o silêncio da mulher, a rebeldia controlada das crianças, os conselhos ultrapassados dos pais sobre o seu casamento, o encontro com os casais amigos para a caracolada e troca de galhardetes. Tudo o resto não importa, tudo o resto se existe é tão longínquo como aquela linha do horizonte em que vê passar diariamente barcos com enormes velas ao vento.

terça-feira, julho 16, 2013

caramba


De um lado esta parede que me impede de escrever. Cheia de frechas e de dúvidas, de inseguranças e de incertezas. Um ponto de interrogação a escaldar que me obrigo a esticar, que me leva, com muito esforço, ao espanto de ainda conseguir, de querer ainda conseguir. De um outro lado um prado, imenso. O verde como eu gosto, semeado de papoilas. Ar demasiado puro para as minhas interrogações, extensão demasiado vasta para a minha endurance. Ao fundo um bosque que tem de ser cruzado, ao fundo do fundo, na vertigem da falésia, um mar já cansado de me esperar. No meio eu, sozinha, pela primeira vez sem pensar no rumo a tomar, concentrada no vento, na maneira de restaurar a parede, concentrada na ponta do lápis que daqui a nada se vai partir e eu, caramba, acho que emprestei o afia a alguém.

Défice

Ontem, num breve olhar pelo Telejornal - que jurei tão cedo não assistir integralmente - encontro uma mãe eufórica quando, perante as pautas do seu filho, descobre as notas dos exames nacionais de português e matemática do 9º ano. De imediato, e em directo, liga-lhe para o informar da boa nova: "tiveste 3 a matemática e 2 a português!" E, espante-se, seguiram-se uns eufóricos "Parabéns!!!!!! Estás feliz? Passaste!" Gelei. Por momentos pensei que a escala clássica de classificação tinha sido alterada de 1 a 5 para de 1 a 3. Depois percebi que nada mudara, só as expectativas, a exigência, os parâmetros. Percebi que nada mudara, só mesmo o principal que vem traçando um futuro com o maior défice da nossa democracia, aquele que passa ao lado da troika e dos partidos, aquele sobre o qual ninguém impõe salvação nacional, aquele que nos levará à verdadeira falência no Século XXI.  Bem vindos à era do défice na educação.

terça-feira, julho 02, 2013

Aviso


Croácia, amiga, vai brincar com outros meninos.

eterno


poema sobre o amor eterno

inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar.

Valter Hugo Mãe

segunda-feira, julho 01, 2013

E se...

João Vaz de Carvalho

Este fim de semana, fugindo ao trabalho e ao calor, estacionei no sofá e descobri, no canal Q, uma série de humor maravilhosa que só ouvira falar a propósito dos Emmys de 2012: What if  (original Wat als). O melhor humor europeu fundado em hipóteses tão absurdas que poderiam ser reais. A não perder de vista.

quarta-feira, junho 26, 2013

Dia sim

Há dias em que, ao  acordamos, tudo nos parece resolvido. O mundo é totalmente redondo, sem arestas, despoluido, fluido. As leis da física e da quimica estão socialmente concertadas, o sol não queima, bronzeia. O metropolitano foi finalmente alvo de um exodo e de um banho perfumado. Conseguimos, na aula matinal, alongar o suficiente para tocarmos com as mãos, ainda que ao de leve, no que está certo. Recompomo-nos num vestido que nos assenta na perfeição, dizemos o que sempre quisemos e o medo esvai-se a cada sílada.  Estamos então preparados para seguir um trilho que aprendemos a desbravar, um trilho que só nós sabemos percorrer, sem encruzilhadas, lombas ou buracos, um trilho verdejante, sinuoso, silêncioso e sereno que conduz ao nosso epicentro, que devolve, a cada passo, toda a liberdade que sempre nos pertenceu.

domingo, junho 16, 2013

Antes

Antes do amanhecer (1995), Antes do Anoitecer (2004), Antes da Meia-Noite (2013). Completa já a triologia que explica como a minha geração poderá chegar (in)feliz aos quarenta. Dos três este último parece-me o melhor: os longos diálogos refinados afastando estereotipos, desconcertando instituições, destruindo e reconstruindo a felicidade do quotidiano. Não sei se no fim tudo acaba bem porque a vida continua e porque, na verdade, o fim está longe. Há ainda um enorme caminho a percorrer, tropeçando, saltitando, contemplando e, sobretudo e sempre, aprendendo. Em 2025 prevejo um "Antes do Meio-Dia", no qual será relatado o impacto do síndrome do ninho vazio sobre o casal Celine-Jesse e a obsessão de uma das personagens pela hora do almoço. Já em 2036, a temática do envelhecimento a dois será esmiuçada sob o elucidativo titulo " Antes que nos esqueçamos".Querem apostar?

quando eu tiver setenta anos

quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência

vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência

vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito

vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito

então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.


 Paulo Leminsky, Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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quarta-feira, junho 05, 2013

Fazer a noite



Nós fizemos a noite.
Acordado eu tomo a tua mão
nutrindo-te com todas as minhas forças
gravo na rocha a estrela da tua energia
com linhas profundas
onde a bondade do teu corpo germinará.
Repito a tua voz escondida
a tua voz anunciada.
Ainda gracejo da orgulhosa
que tu tratas como uma pedinte
dos malucos que respeitas
dos simples em quem te deleitas

E na minha cabeça que pouco a pouco se une à tua e à noite
fico maravilhado de tal mistério
tão parecido contigo e com tudo que amo
o que é continuamente invulgar.


Paul Eluard, poema extraído do tema intitulado “ Olhos férteis”
- 1936-

segunda-feira, junho 03, 2013

retomo-me

Os dias começam com pedras da calçada sob os meus pés. Um puzzle indizível que confunde o sono com que ainda olho para a vida àquela hora. Está tudo calmo, oiço cá dentro o coração quase a sair pela boca. Espreita os poucos que passam, cansados, esperançosos, preocupados, pensativos, distraídos. Há praças e fontes e avenidas suficientemente grandes e vazias para que eu chegue ao limite permitido pelas pulsações meio descompassadas, meio descompensadas. Em brechas de azul vejo aviões sobrevoando os primeiros raios de sol, imagino onde irão assim, tão apressados, àquela hora. E logo uma rabanada de vento em contramão me alerta para esse caminho aleatório, mais uma travessia transgressora, mais um recorde batido. Alongo a preguiça, tento entender o que gritam os meus quadris ou de que se queixa o joelho direito. Retomo o quotidiano a lembrar-me das persianas ainda fechadas, do cheiro das padarias que finalizam o expediente, da delicadeza das árvores, da frescura com que ando aprender a amanhecer. Retomo-me assim mais um pouco, impreterivelmente, todos os dias.

domingo, junho 02, 2013

o equivoco da vitória

 
A nossa vitória de cada dia
 
Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória de cada dia. Não temos amado acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos alegria que não tenha sido catalogada. Temos construido catedrais, e ficado do lado de fora pois as catredais que nós mesmo contruímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.

Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'

quarta-feira, maio 29, 2013

tonto


Devo ser um pouco tonto

porque às vezes dou por mim a falar sozinho
e digo coisas malucas,
digo nomes bonitos de miúdas e barcos
ou títulos de livros que ninguém escreveu.
Devo ser um pouco tonto.

Babo-me, grito e choro.
Os verbos absolutos enchem-me de ternura
e essas vogais soltas, inúteis, redondas,
que voam para nada,
elevam-me boquiaberto a não sei que gozos.

Sou feliz e, por isso, também um pouco tonto.


 Gabriel Celaya

sexta-feira, maio 24, 2013

De acordo



Para tomar balanço para o fim de semana, talvez uma das melhores letras da música portuguesa dos últimos tempos!

quinta-feira, maio 23, 2013

Simples


quero de ti o que for simples
um aceno, um postal
o teu nome numa concha
ter apenas isto: um banco de jardim
onde te esperar e esperar.
Vasco Gato