sexta-feira, dezembro 23, 2011

Pára, escuta e olha...



... é Natal e somos privilegiados, todos.

(Uma cópia descarada de um trecho de um dos meus livros preferidos citado, recentemente, pelo Fernando Alves)


Entre uma infinidade de hipóteses de não teres nascido, saiu-te a sorte de teres nascido. Se te tivesse saído a "sorte grande", haveria gente que se admiraria de isso te ter acontecido. Tu mesmo dirias talvez que parecia um "sonho", que era inacreditável, que ainda não tinhas caído em ti do assombro. Mas essa sorte foi a de um número entre dezenas de milhares ou mesmo centenas. Mas teres nascido é ter-te saído a sorte entre biliões e biliões e biliões de hipóteses negativas. Saiu-te o número inscrito numa areia do universo. Tens pois o privilégio incrível de veres o sol, as flores, os animais. De ouvires as aves e o vento. De. E todavia, como esqueces isso tão facilmente. Breve tudo se apagará em silêncio. Breve a oportunidade de estares vivo cessou. Provavelmente ninguém mais saberá que exististe. E mesmo dos que o souberem, não se saberá um dia. Num momento não muito longínquo morrerá o último homem sobre a face da Terra. Esse é, aliás, o momento da tua própria morte, porque tu és o primeiro e o último homem que nasceu. Tudo é rápido e contingente e miraculoso. Tudo é rápido e sem consequências. A única consequência és tu e a vida que viveres. Não a desperdices. Não inutilizes a fabulosa sorte que te calhou. Vê. Ouve. Pára, escuta e olha, que a morte vai a passar. E terás cumprido ao menos, para com o universo, um pouco do teu dever de gratidão.



Vergilio Ferreira, Pensar (ponto 178)

segunda-feira, dezembro 19, 2011

cats and dogs

Christopher Hitchens (1949-2011) e a sua avassaladora lucidez.

Frequentemente

(numa esquina, perto da Avenida da Liberdade)



Nas minhas deambulações pedestres por Lisboa tropeço (por vezes literalmente) em tudo. Em alegrias e tristezas, amores e desamores, enfados e euforias. Ultimamente tropeço frequentemente em utopias.

quarta-feira, dezembro 14, 2011

A mudança mais desejada

Hoje, também os carros dançam. As casas movem-se levemente. E eu – que mudei de casa e de roupa, de cidade e de cama, de palavras... Eu, que mudei de música e de carro, de saudade, de quarto... Eu – que mudei de computador e de rua, de eternidade e de paisagem, de abraço e de clima... Eu – que mudei de língua e de lágrimas, de deus e de caderno, de crenças e de céu... Eu – que mudei de lume, que mudei de medos... Eu – que mudei de planos, de lençóis, de secretária... Eu – que mudei de óculos e de rumo, de amigos, de champô, de rituais e de supermercado... Eu – que mudei de tudo que em quase nada mudou, mudei de dentro de mim para dentro de ti, meu amor.



Filipa Leal
in Talvez os Lírios Compreendam, 2004

um mês, uma página vazia e um final feliz



Um Dezembro boquiaberta. Inundada de queixumes egoístas e vidas vazias, inúteis porque o sentido perdeu-se em sonhos fúteis. Um Dezembro de compras, de trânsito, de compulsão. Um Dezembro de panfletos egoístas distribuídos a cada esquina. Em fundo, quase em surdina, algum americano, muito famoso, canta uma música natalícia. Um mês de partidas esperançosas e de chegadas previstas, de encontros oficiais e de desencontros oficiosos. Um Dezembro que me petrifica na presença de uma página em branco, a angústia da escolha da primeira palavra para uma nova, longa e atribulada história à qual não posso negar um final feliz.