segunda-feira, dezembro 02, 2013

Alívio rápido

Alívio Rápido


A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


Carlos Bessa in Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007.

1 comentário:

Filomena Chiaradia disse...

"Morre-se tanto à espera da sorte grande"...

..."Estar atento, cuidar, observar o que nos rodeia. Simples e, contudo, raro."

Duas postagens, um mesmo importante tema, que metaforicamente poderia ser dito na primeira frase de hoje: "A idade da poesia cedo nos abandona".

Portanto, o ouriço-cacheiro nos brindou com um "guia rápido" cujo alívio só se dará na aprendizagem de se abrir sensivelmente aos corações que não fazem ginástica. Bravo!