terça-feira, março 26, 2013

Onde vim, por fim, parar


 Tarde com sol

As coisas simples dizem-se depressa ; tão depressa
que nem conseguimos que as ouçam. As coisas
simples murmuram-se; um murmúrio
tão baixo que não chega aos ouvidos de ninguém.
As coisas simples escorrem pela prateleira
da loja; tão ao de leve que ninguém
as compra. As coisas simples flutuam com
o vento; tão alto, que não se vêm.

São assim as coisas simples: tão simples
como o sol que bate nos teus olhos, para
que os feches, e as coisas simples passem
como sombra sobre as tuas pálpebras.

Nuno Júdice

domingo, março 24, 2013

Não saber nada

E surgiu de novo aquela irritação com a sabedoria popular, verdades comprovadas cientificamente ditas de forma indiscriminada, automática, sem um pingo de pensamento critico. Tudo tem um início e um fim. O óbvio contrafeito, o evidente perante a dimensão humana de tempo. Se contrariasse a sabedoria popular iriam de imediato pedir-lhe exemplos, a seguir a tal explicação seria internada num hospício, única alternativa oficial à extinção da Inquisição. Mas sim, se quisessem mesmo saber, ela explicaria as suas coisas que não têm inicio, que sempre existiram e permanecem para lá da Geografia e do Futuro, da Meteorologia e da Religião. Os filmes tolos de domingo à tarde têm essa mensagem -  do para sempre, do de sempre -  e por isso, talvez, são tão bem sucedidos apesar dos maus guiões e dos actores habitualmente mediocres. Encerraria tal explicação com as evidências de que nem tudo tem um fim, as suas últimas palavras de palestrante seriam"para sempre". Há coisas cá dentro que são redondas, circulares, sem ângulos, bifurcações ou cortes. Palestras e hospícios à parte, ela encantava-se secretamente com a clareza linear destes límpidos circulos infinitos que neles encerram o mais precioso. Afinal o povo não sabe tudo, melhor, não sabe quase nada. 

sexta-feira, março 08, 2013

O grande evento


Ontem, na abertura da Monstra 2013, qualquer coisa muito parecida com isto : uma de muitas reportagens do grande colunista social Atail Menezes.

quarta-feira, março 06, 2013

O rosto



Por aqueles dias estava José em casa sozinho ao final do dia. A mulher tinha ido a uma consulta lá para Lisboa, tão doente coitada, e ele preparava-se para ver o seu programa favorito antes do telejornal. Na cozinha, onde improvisara uma sala com a poltrona poida que tanto amava, alinhavava o jantar, cozinhar era coisa de homem e ele fazia-o desde os tempos em que dera por si responsável por alimentar um rancho de irmãos órfãos. Iscas de cebolada. Quase a terminar o tempero, ouviu um estrondo no andar de cima. Era Inverno, alguém, com pressa deixara uma janela mal fechada. Se entra chuva, lá se vão as madeiras. E elas custaram caro. Enérgico, com fama e proveito, sobe a escadaria alcatifada num ápice e entra no quarto onde supunha tivesse vindo o barulho. Corre para a janela, estava fechada. De soslaio repara agora na porta do guarda-fatos escancarada e em parte do seu conteúdo espalhado pelo chão. A sua infundada certeza surpreendera-o tal como Ruben, em pânico, que o esperava atrás da porta. José não deixaria passar. Trabalhara duramente toda a vida, sujeitou-se a muitas humilhações e sacrifícios, combatera na selva africana, construiu aquela casa com as suas próprias mãos, casara as duas filhas com homens humildes mas trabalhadores, tinha o seu programa favorito à espera. Não, não e não! Ao virar-se cruzou o olhar com o assaltante, odiou-o tanto quanto o seu coração permitia. Ruben cruzou o olhar com José, um homem enorme, cheio de ódio e de vontade. Tentou escapar-lhe com a destreza de que se gabava mas, ao perceber que seria impossível, sacou da naifa e, de imediato, desferiu todas as facadas que o medo permitiu. José atordoado pela dor, afogou-se no seu sangue e guardou, já emudecido, a ultima imagem de Ruben escapulindo pela janela.
Seguiram-se os espectáveis episódios, espanto, horror, dor, médicos, polícias e toda a parafernália de homens e instrumentos para trazer de volta o que ficou na retina de José. A verdade transforma-se em suposição, a indignação em mistério, as palavras em autos, o sangue em relatório, a casa em fotografias, a janela aberta e os telhados contíguos em solução.
Ruben foi um nome pronunciado mais tarde, depois de muitas horas de olhos abertos imaginando José e a sua surpresa, José e a sua luta inglória, José e a dor de saber sem ter tempo para denunciar. Depressa o nome de Ruben se transformou também num relatório. Num dia ensolarado, foram buscá-lo à liberdade à qual tão cedo não voltaria.
O alívio invadiu aquela filha, trabalhadora e humilde, que logo soube do fim do mistério, da confissão, da detenção. Herdeira dos azulejos, da alcatifa e da bondade do seu pai, veio transformar mais palavras em peças processuais. Esta obrigação nada era comparada com a vontade de agradecer as horas de olhos abertos que encarceraram aquele nome. Estava agora perante o rosto da Justiça divina que reencaminhara o destino para a dos Homens. Estava perante aquele rosto tímido e desconcertado com a emoção do agradecimento. Aquele rosto vulgar, imune à dor na esperança que daí brotasse clarividência. Estava perante aquele rosto e aquele rosto era o meu.

segunda-feira, março 04, 2013

Recantos


Sou um sujeito cheio de recantos.
Os desvãos me constam.
Tem hora leio avencas.
Tem hora, Proust.
Ouço aves e beethovens.
Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim.


Manoel de Barros, Livro sobre nada