sábado, fevereiro 25, 2012

Ar puro




Há quatro dias, pela primeira vez, com uma infecção respiratória. Hospital, medicamentação, atestado e respectivas formalidades. Pijama. Respirar baixinho e devagar. Comer quase nada, ler muito. Pouco lixo televisivo, cds reanimados de compartimentos bolorentos. Hoje, só hoje, soube o verdadeiro diagnóstico. Bem sei, o meu corpo avisa sempre. Basta crer na sua inteligência que compensa um espírito (para) sempre perdido em contemplações inusitadas. Este ambiente tornou-se pesado, quase irrespirável para quem nasceu com uma (in) suspeita queda para a felicidade. Está mesmo na hora de mudar de ares.

quarta-feira, fevereiro 22, 2012

A mulher-electrodoméstico

Ela cabeceia contra o vidro, insiste no sono que ainda muito lhe deve. O fim-de-semana não foi suficiente, talvez toda a vida não o seja para descansar do ferro de engomar, da ansiedade de chegar, da dor de um carinho esquecido. A mulher-electrodoméstico adormeceu de novo, está despenteada, casaco descosido, não usa baton nem dentista. Sonha com as revistas de vida ficcional, sempre de final feliz. E este é um sonho que só dura até à próxima travagem brusca.

segunda-feira, fevereiro 20, 2012

Quando se tenta apurar o estado psiquiátrico...


... da Dama de Ferro, ela surpreende-nos com uma lucidez incontestável.


Um filme surpreendente, o melhor papel de sempre da minha actriz preferida, uma história com a qual cresci contada pela memória selectiva de uma mulher, talvez agora, tão fácil de entender.

A solução



Manter sempre as portas (entre)abertas, presas pelos pensamentos que nos moldam, pela capacidade de amar que nos vai definindo. À cautela devemos deixar cá dentro somente o inquebrável e, já agora, usar um cachecol bem quentinho para evitar constipações.

segunda-feira, fevereiro 13, 2012

era uma vez...


... uma gordinha melancólica e divertida, anti star system,que é aplaudida pelo seu talento. Adoro-a!

A mudez, a contenção e a cassete



O Artista é um filme singular: mudo, francês e falado em inglês. É como uma invenção que nos cativa somente num primeiro momento, de imediato percebemos que não vale a pena patenteá-la;

J. Edgar é um filme mais íntimo que histórico. Cinquenta anos de trabalho árduo e manipulação,obsessão, obediência e contenção. Não se pode ser feliz assim mas está visto que é possível, de permeio, amar perdidamente;

Jovem adulta é um encontro de um excelente guião e uma atriz da minha geração de que sou fã incondicional desde Monster: Charlize Theron. Com 37 anos volta à cidade natal tentando recuperar peças que não encaixam no seu puzzle, encontrando a verdade sobre a sua popularidade no liceu e o sobre o vazio que, desde então, não mais a abandonou. A cassete obsoleta e sonhadora que a transporta para a adolescência, que a (des)construiu, é afinal a chave para resolver todos os problemas do presente.

terça-feira, fevereiro 07, 2012

Assim se inicia



“Há alguns anos, ao regressar a Inglaterra após uma curta viagem ao estrangeiro (era então Master do Trinity College de Cambridge), o agente da imigração em Heathrow, que examinou o meu passaporte indiano com bastante atenção, colocou-me uma questão filosófica bastante complexa. Olhando para a morada no impresso da imigração (Master’s lodge, Trinity College, Cambridge), perguntou-me se o Master de cuja hospitalidade eu obviamente desfrutava era meu amigo intimo. Isto levou-me a pensar, pois não era completamente claro para mim se eu poderia afirmar ser amigo de mim próprio. Após alguma reflexão, cheguei à conclusão de que a resposta devia ser afirmativa, visto que me trato muitas vezes de forma bastante amigável e, para além disso, quando digo coisas inconvenientes consigo logo perceber que com amigos como eu não preciso de inimigos. Como tudo isto levou algum tempo a ser compreendido, o agente da imigração quis saber ao certo porque razão eu hesitava e, em particular, se havia alguma irregularidade quanto à minha estadia na Grã-Bretanha”.


Assim se inicia “Identidade e violência – a ilusão do destino” (editado pela Tinta da China) do fabuloso Nobel Amartya Sen.

Desaguar

A morte da água


Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo a protege. Na foz é que há a aventura do mar largo. Acabou-se qualquer possível árvore geneológica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida.


Ruy Belo

quinta-feira, fevereiro 02, 2012

Novo paradigma



"Passos Coelho venceu as eleições defendendo um novo paradigma político". Muito se ouve falar sobre o que isto quererá, de facto, dizer. Como cidadã consciente e proactiva (adoro este adjectivo de iogurte) deixo aqui o meu humilde contributo visando esclarecimento generalizado.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Com a tua letra



Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.


Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.


Fernando Assis Pacheco in A Musa Irregular

tenor do bairro




Voltei a ser um homo pedestrus. Contudo, há dias de preguiça ou de saltos altos em que o amarelo da carris me encanta de forma particular.


Sento-me quase no início, de costas para o rumo a seguir, observando todo o autocarro. Estranho o som que nasce na cabine do motorista, uma playlist de musica pimba portuguesa e francesa acompanhada pela sua voz de tenor do bairro. De pronúncia irrepreensível, interrompida pelos bons dias que insistia em dar aos novos passageiros, ele declarava desfeito ou esperançoso – não consegui descortinar – je t’aime mon amour, je t’aime(eeeeeeeeeeeeeeeeee). De seguida adiantava-se numa letra do Tony Carreira, nunca se desconcentrando pela emoção da curva apertada, pela adrenalina do semáforo amarelo, pela surpresa da paragem. O meu motorista da carris, tenor do bairro, óculos escuros, cabelo rapado, melou todo um autocarro matinal, cinzento de contrariedade e de sono, com o seu romantismo lânguido. Quase de saída ainda ouvi, convicta e afinadamente, pedir para um amor desavindo voltar e perdoá-lo. Talento puro.


Ocorreu-me escrever à Carris louvando-o pela alegria ( e surrealismo, vá) que coloca no seu trabalho mas, dado o gosto musical duvidoso, abandonei de imediato a ideia .