quinta-feira, setembro 26, 2013

Dentro

Há dias, como o de hoje, que sonhamos voltar lá para dentro.

A Ana quer

A Ana quer
nunca ter saído
da barriga da mãe.
Cá fora está-se bem,
mas na barriga também
era divertido.

O coração ali à mão,
os pulmões ali ao pé,
ver como a mãe é
do lado que não se vê.

O que a Ana mais quer ser
quando for grande e crescer
é ser outra vez pequena:
não ter nada que fazer
senão ser pequena e crescer
e de vez em quando nascer
e voltar a desnascer
a Ana quer.

Manuel António Pina in O Pássaro da Cabeça e mais versos para crianças, Assírio e Alvim

terça-feira, setembro 24, 2013

Monumento

Porque há poucas palavras para os programas eleitorais autarquicos com que me deparei.

quarta-feira, setembro 18, 2013

Desaparecer

Desaparecer. Era esse o verbo-chave, o verbo-urgência, o verbo-mestre. Impunham-se sobre ele verbos mais corriqueiros como fazer ou chegar, sufocavam-no adjectivos que atafulhavam o quotidiano urbano. Desaparecer, era a primeira palavra que murmurava quando acordava, a última com quem congeminava antes de adormecer. Este verbo nunca cabia nos seus sonhos, pequenos e freudianos, ele era da realidade e estava em tudo o que fazia contrariada, nas palavras que deviam ser evitadas, na barreira onde esbarravam os “e se…”. Rapidamente tornou-se arquitecta da fuga, desenhou uma fonte única para este seu verbo. Devagar cumpriu minuciosamente os passos definidos, fechou ciclos, declarou, ainda que subtilmente, todos os amores e desamores. Poucos acreditaram que o faria, ninguém atentou o tempo suficiente para entender que o plano estava em marcha. Um dia encontraram casa vendida, contas pagas, secretária vazia. Nesse dia, algures, durante a longa viagem que é desaparecer, ela finalmente conjugava todos os tempos do verbo com um sorriso enorme, um sorriso sem sombra de medo.

segunda-feira, setembro 16, 2013

Voyeurismo

Na minha mala há uma carteira com muitos trocos e cartões igualmente inúteis, um saco de toalhetes, uma pequena bolsa contendo coisas que queremos disfarçar com um padrão kitsch de sapatilhas de bailarina entrelaçadas, um moleskine que devia estar já atafulhado de palavras, um porta-chaves esgotado com um ouriço-cacheiro idoso que veio de longe e tem um ar muito cansado, um livro para nunca me entediar, uma pasta transparente com artigos com leitura adiada até ao limite da insanidade, um cartão mágico que permite, em parceria com as minhas pernas, deslocações mais ou menos lúdicas, um cinto para trocar que ficou péssimo naquele vestido, um pêssego amassado, uma conta para pagar, um bilhete amputado de um filme que não devia ter visto, um telemóvel à prova de gente chata e de má música, o peso e a leveza dos meus dias.  

sexta-feira, setembro 13, 2013

sentença para nadar

Agora imagino-a nadando numa piscina em alemão, a língua que ama. Palavras compridas, imensas, cheias de significado perante as suas braçadas que julga inseguras. Nadar é um enorme prazer que deve disfarçar com o esforço bem simulado. Debaixo de água é o paraíso, um útero, a paz clorificada, a purificação antes da Salah. À tona desce ao Inferno da discriminação. Quase todos se afastam e comtemplam a sua diferença com desdém murmurado. Conforta-a saber que estes são os planos traçados por Deus. Em breve saberá o sentido de toda aquela imbecilidade humana ou quiçá divina. Talvez se revolte, talvez aceite e se radicalize, talvez se refugie na indiferença, qualquer opção a fará renascer. Por ora é só uma criança que gosta de aprender, uma criança secretamente aquática e livre. É fácil distingui-la no meio de todas as outras, excitadas pelo estado líquido do meio: é a de burkini preto, a que nada silenciosa e veloz.

quinta-feira, setembro 12, 2013

Hoje

Durante muito tempo esperei. Um sinal,
um breve tumulto, cá dentro ou aí fora.
Durante muito tempo tive a certeza.
O absolutismo da certeza que cega os sentidos.
Durante muito tempo esperei serenamente,
recostada no idílico conforto dessa certeza.

Hoje não me demoro mais em nenhum deserto,
atravesso os oásis: bebo água, semeio esperança,
adivinho ventos favoráveis.
Hoje as dúvidas comandam as minhas tropas,
rendidas ao encanto dos campos minados
e das trincheiras de confidências.
Rendidas ao silêncio tranquilo do fim de batalhas ganhas e perdidas.
Rendidas aos pequenos territórios conquistados
territórios que sempre me haviam pertencido.

Dificuldades em ser a tempo inteiro



Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois levanto-me tarde e primeiro há que lavar
os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar por fim a casa para a prosa
de uma carne à jardineira, o estrondo
das notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só por volta das duas da manhã começo a despir
o fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.

José Miguel Silva in Relâmpago, n.º 12, Fundação Luís Miguel Nava, Lisboa, 2003

quarta-feira, setembro 11, 2013

Em casa

Amor como em casa


Regresso devagar ao teu sorriso como quem volta a casa.
Faço de conta que não é nada comigo.
Distraído percorro o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.
Devagar te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no amor como em casa.

Manuel António Pina in Ainda Não É O Fim Nem O Princípio Do Mundo Calma É Apenas Um Pouco Tarde (1974)

terça-feira, setembro 10, 2013

Lição

"Apercebi-me de que era necessário retirar uma lição mais complexa, uma lição que pudesse jogar com as imcompatibilidades do amor, conciliando a necessidade de sabedoria com a sua provável ineficácia, conciliando a imbecilidade da paixão com a sua inevitabilidade. O amor tinha de ser apreciado sem cairmos no optimismo ou no pessimismo dogmáticos, sem construirmos uma filosofia dos nossos medos, nem uma moral das nossas decepções. O amor dava ao espirito analitico uma lição de humildade, a lição de que, por mais que ele lutasse para alcançar certezas inabaláveis (numerando as suas consequências e agrupando-as em séries bem definidas), a análise conteria sempre erros - e, por conseguinte, nunca se afastaria muito da ironia."
Alain de Botton in Ensaios de Amor, Dom Quixote

segunda-feira, setembro 09, 2013

A tranquilidade


O Mordomo – tradução literal do título original – é um filme que, à semelhança de “Cor Púrpura”, “Malcom X” ou de “As Serviçais” retrata o apartheid institucionalizado de uma democracia que se autoproclama madura, um apartheid que ignorou a abolição da escravatura e que vigorou oficialmente até ao meio da década de 60 do século XX mas que, efectivamente, se prolongou, na penumbra da subtileza, por muito mais tempo. O nosso Mordomo serve os Presidentes dos EUA, de Eisenhower a Reagan, com a tranquilidade institucionalizada da diferença. Luta, por décadas, com o filho, um defensor incorrigível dos Direitos Civis e do Direito de Voto, luta contra a igualdade de que está certo de lhe ser devida. A história da segunda metade do século passado daquele pais e este homem confundem-se: entre o abismo e o orgulho, a dignidade e a revolução paira sempre o absurdo de como a natureza humana é volúvel, inescrupulosa, cínica, displicente. A estoicidade com que se arma para enfrentar a sua dura vida, o que fica do que passou, a tranquilidade do seu renascimento já tardio conduzem-nos a um final que não poderia ser mais feliz.

sexta-feira, setembro 06, 2013

Por vezes



E por vezes as noites duram meses.
E por vezes os meses oceanos.
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos. E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos.
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos.
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos.

David Mourão-Ferreira