Os 182 passageiros de um Airbus da SATA Internacional que teve de fazer uma aterragem forçada em Santa Maria, nos Açores, no domingo, devido a uma avaria técnica, deverão chegar a Lisboa no final da tarde desta segunda-feira."
O que me faz lembrar um texto que escrevi há uns anos, baseado na minha viagem Lisboa-Rio de Janeiro, sobre este meu medo com o qual tenho de viver.
Lá vou eu. Malas,check in, corredores, portas, autocarros ou mangas intermináveis, companheiros de viagem animados e, por isso, inconscientes. Finalmente um lugar, quase sempre por companhia a asa inquieta e um cinto grosso, engenhoso que nos dá a ilusão de segurança, podemos acabar, sim, mas um banco made in Taiwan nos acompanhará na eternidade.
Ao fundo sempre uma hospedeira cada vez menos interessante que, ridícula, se articula numa explicação multilingue de como podemos escapar à eternidade e ao nosso banco. Os passageiros dos panfletos, felizes, escorregam pelas portas de emergência e inspiram pelas máscaras um oxigénio que os converte àquelas seitas que acham morrer um sinónimo de libertação e encontro com um deus qualquer.
Depois do espectáculo que activa o pânico começa tudo a funcionar: motores, tripulação, pista, acção! Conversa-se sobre o que há do outro lado do oceano e fazem-se planos para as muitas horas de voo. Muitas horas de voo… muitas horas de voo…enquanto esta frase ecoa em mim desafiamos a velocidade da luz e tentamos descolar o trem de aterragem de uma terra que ainda faz todo o sentido.
Levantamos, diagonal, as casas, as pessoas, a cidade encolhe de súbito, diagonal, S.O.S., S.O.S.. Relembro todas as orações em que já não acredito.
Piscam as luzes de fim de perigo, tiro o poderoso cinto que me agarrou à vida, insisto em manter-me no lugar imóvel, fria, lívida. Duas ou três lágrimas rolam pela face.
O céu é azul, a paisagem é indiscritível, posso dizer somente que há algumas nuvens mas não precisavam de estar lá em baixo! E fica provado mais uma vez que a Humanidade também pode voar.
Um whisky por favor! Sem gelo! Engulo um só trago como a substituir um soco que imploro. Não chega. Outro! E outro! Um gin! Não, um gin faz mal ao estômago que também voa comigo. Talvez outro whisky. Um sono, um sonho que não lembro. Acordo e voo directamente para o pesadelo do cinto e da voz credível do comandante que informa que perdemos muitos metros de altitude e mais algumas considerações indecifráveis sobre a atmosfera! Até o Adamastor se mudou agora para aqui caramba! Isto não é nenhuma caravela nem eu tenho pretensões epopeicas! A meio deste resmungar caem automática e coordenadamente as máscaras dos panfletos! Não! S.O.S.! S.O.S.! Agora um Xanax! Dois! À frente as crianças divertem-se com óbvia limitação de espaço e as pipocas que não comem aterram em mim ininterruptamente. Ao lado um professor de História que, após trocarmos impressões várias sobre aquela e outras matérias, adormeceu profundamente… sinto-me um pouco culpada por isso. E eu ali meia de ressaca, meia alucinada, artificialmente calma… A medo inclino-me para a ficção de janela , é já terra lá em baixo. Endireito-me, é melhor não espreitar mais porque ainda posso acreditar que aqueles fios azuis são mesmo rios enormes e os pontos avermelhados aglomerados populacionais.
A hospedeira passa mais uma vez e intimida-me com o seu olhar e eu … deixo-me intimidar e não lhe peço mais álcool.
Quase já habituada a tudo isto, depois de duas viagens radicais até àquele espaço, ali mesmo no fundo do corredor, a que chamam casa de banho, de novo a parafernália de sons e luzes a piscar!
O comandante diz que está tudo bem, que nenhuma parte do avião se desintegrou e que o trem de aterragem obedeceu. Vamos iniciar a descida entre as montanhas que circundam a cidade. Já lhes disse que o comandante tem uma voz credível?Outra vez o cinto, o meu corpo não responde, lágrimas nos olhos, S.O.S., diagonal, uma volta, outra, arrisca, a pista atrai como um íman inconsequente. Preparar, apontar…aterramos. O comandante credível acertou com a pista e nós batemos palmas, dentro da nossa cabeça, à pontaria e ao medo que acabou e sair de cena. Quero sair! Quero sair também! Quero beijar esta terra ou qualquer outra porque estou certa que, quando o fazem, é sempre um sinal de alívio. Tenho mesmo de voltar?
PS: vou voar na sexta feira....