quarta-feira, abril 10, 2013

Apocalipse suburbano


Era uma noite de verão indistinta nos subúrbios de Lisboa. Um calor seco habitual, rua vazia de moradores que partiram para férias na terra, em África, no parque de campismo da Caparica. Eles desentenderam-se. O negócio correu mal e, daquela cave na praceta, saiu um som estranho, parecia de tiros abafados com uma almofada, mas também podia ser só impressão dos vizinhos que assistem demasiada violência pela TV, ou seriam talvez foguetes da festa da paróquia lá longe. Quem ficou por ali agarrou-se à crença de que tudo o que se passava naquele subúrbio era, afinal, normal. A fé salva e amanhã é preciso acordar cedo para apanhar um lugar sentado na longa viagem de comboio até ao trabalho. Ninguém viu então a saída dele com uma caixa estranha de plástico comprada à pressa na loja-sempre-aberta do chinês na rua de baixo. Uma caixa grande para guardar cobertores e edredons no verão e, durante todo o ano, pedaços de corpo de quem não cumpre tratos, de quem não respeita os códigos, de quem não tem moral. Apesar destes percalços - tudo tem solução - a vida continua e o negócio também.

Era uma tarde quente e húmida de verão nos subúrbios de Lisboa. As galochas, maiores que as pernas, percorriam milimetricamente uma ribeira com juncos, salgueiros e muito lixo. Quase ninguém reparara nela que estava por ali antes de todos aqueles prédios chegarem. A ribeira talvez fosse a solução para o mistério que investigava e para um outro, o mistério da resistência da natureza ao cimento, ao feio, ao urbano, ao deprimente. Estavam todos cansados de procurar, os das margens e a das galochas, na ribeira. As rãs, geração após geração, reproduziam-se ali sem ainda lhes ter nascido um terceiro olho e o canto de um pássaro, por vezes, relembrava que bucólico era uma palavra que ainda devia existir. Ao longe avistada uma caixa garrida. Era só mais uma caixa no meio daquele lixo, desanimo que depressa abandonou ao recordar as exactas palavras da confissão dele naquela manhã. Uma caixa azul e amarela, atirada de um dos trinta viadutos que ensombram a ribeira. Aberta, partida, ensanguentada. Estava mais quente que nunca, a espuma amarelada de poluição que corria no leito lembrava descrições assustadoras do Livro do Apocalipse que tanto a perturbara em criança. E, de repente, emerge o antigo desejo de Inquisição para catequistas sádicos. Isola-se a caixa, mede-se, fotografa-se e deixa-se alguém a fazer-lhe outras coisas. O caminho do Apocalipse continua. A narrativa do Apóstolo a passar-se em Patmos também. Bastante mais à frente, finalmente, a cabeça de S. João Baptista que a fé dos vizinhos não salvou na outra noite daquele mesmo verão. Faltava a bandeja, mas só a imaginação bíblica tinha contado com ela. Isola-se a cabeça, mede-se, fotografa-se a deixa-se alguém a especular sobre o estranho sorriso que ostentava. Agora acabou. Já se pode sonhar com as sandálias preferidas que ficaram na bagageira do carro e, caminhar com elas, segura, num dia mais adequado que este, para o tão anunciado Juízo Final.

1 comentário:

Filomena Chiaradia disse...

Bravo! "e o canto de um pássaro, por vezes, relembrava que bucólico era uma palavra que ainda devia existir."
As palavras, assim como a "malta das letras". Muito bom!