quarta-feira, novembro 30, 2011

Passado presente



Tenho acordado com o passado. Parte de mim ficou por lá, ora arrumada com método, ora distraidamente espalhada no chão. Aprendi a dar-lhe a importância devida, uma década de desintoxicação do passado, medicada com sucesso por doses regulares de presente e sobredosagem de esperança no futuro. Mas tenho acordado com o meu passado depois de noites longas e tranquilas. Não o carrego pesarosamente ou me iludo com as suas glórias. Acordo com ele simplesmente. Saímos de casa cedinho no meio do nevoeiro, ouvimos o dueto Caetano-Gadú durante todos os percursos de solidão. É uma espécie de amigo imaginário, este passado, que agora me acompanha, tranquiliza e sussurra qualquer coisa que ainda não consigo entender, embora suspeite ser da máxima importância.

Pecado




Um ministro muito opinador, a propósito de convulsões orçamentais, invocava em vão o santo nome da Serenidade. Contei, cinco vezes em meio minuto. Serenidade para agir, pensar, dialogar, decidir, Serenidade para aceitarmos. Até um ateu teria visto ali um pecado mortal com direito a uma eternidade ardendo nas chamas do Inferno.

sexta-feira, novembro 25, 2011

Carta de Condução

Carta de condução

Já tive um carro da cor dos teus olhos. Deixava-o
estacionado à frente de prostíbulos onde alugava
quartos com vista sobre o quintal dos vizinhos.

Esperava por semáforos, sem saber que esperava
apenas por ti. No auto-rádio, a tua voz cantava
fado demasiado velho até para a minha mãe.

A segunda circular era uma manifestação pacífica
de pára-brisas, as palavras de ordem eram simples
porque ainda não sabia que já me tinhas escolhido.

Quando os outros rapazes folheavam revistas de
carros nas aulas de matemática, eu apenas me
interessava por unicórnios e farmácias abandonadas.

Agora, os meus olhos contam quilómetros nos teus,
procuro papéis entre os papéis do guarda-luvas e
tenho tanto medo que me vendas em segunda mão.



José Luis Peixoto, in Gaveta de Papéis

quarta-feira, novembro 23, 2011

Não foram detectadas marcas de travagem





Éramos amigos há tantos anos. Talvez tenhamos nascido amigos mas toda essa eternidade não nos impediu de acelerar. Sei que conduzíamos já noite numa auto-estrada vazia, certos de que toda aquela velocidade era o nosso segredo mais profundo, via única libertadora de pequenas frustrações quotidianas. Esquecemos tudo, enchemo-nos de nós e, condutores inexperientes, acelerámos. O ego estrangulado pela insegurança e as condições de visibilidade deficientes não ajudaram. Chocámos com involuntária frontalidade. Não foram detectadas marcas de travagem no asfalto. Um de nós entrara em contramão naquela auto-estrada. Infelizmente só sobrou essa inútil discussão.

segunda-feira, novembro 21, 2011

poderes extraordinários





Ouvi várias vezes que palavras lidas não servem de nada, são refúgios, vazios e desculpas para preencherem ineficácias, são inutilidades, excessos, tiques de intelectualidade, ímanes de bocejos. Ler muito não havia ou haverá de fazer grande bem, sobretudo se o considerarmos oposto de “viver a vida”. Ler assim, dizem, condena a desaires recorrentes, escolhas erradas, rótulos inaceitáveis, absentismo de afectos, ausência de sociabilidade. A mim, que pouco mais sei da vida do que o que os livros me vão ensinando, cabe comunicar que, além de praticamente ausência de dioptrias até aos 36, eles deixam-me que construa divertidos puzzles de ficção e de realidade, dão-me que pensar e outros poderes extraordinários - desconhecidos do empirismo fundamentalista do século XXI - que serão, a seu tempo, revelados à Humanidade.

sexta-feira, novembro 11, 2011

Oh pá!

Ouve, Otelo, pá:

"O nosso quartel general é a Constituição sobre a qual os presidentes colocam a mão em juramento. O povo, Otelo, pá, é civil. Mesmo fardado."

Vã esperança



Na paragem de autocarro conversavam os três animadamente. Adolescentes, gorro até ao queixo, calças até ao sub solo e muitos "tipo", "iá" e "tás a ver". Ouvindo com mais atenção apercebi-me que um contava a conversa recente que tinha tido com o pai, que o pressionara para uma opção. Ele dissera que não sabia, que "tipo", quer aprender, sim, mas tudo, todas as coisas, o máximo que puder. O pai não compreendia, insistiu que o filho tinha se ser alguma coisa e ele, incompreendido, explicava aos amigos que para ser isso tinha de aprender muitas coisas sobre tudo. Apesar do meu coração de 160g (ecocardiograma dixit) ter ficado cheio de esperança, constatei que este país não é para Homens do Renascimento.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Qual é o lado mais cómico disto?



Percorremos os sites favoritos num momento de inércia laboral e encontramos raios de sol como este. Não resisti, por visceral identificação, a transcrever.



"Uma das primeiras grandes revelações da minha infância, ao surpreender as coisas, foi verificar que me interrogava, invariavelmente, assim: qual é o lado mais cómico disto? Os desfiles militares, as cerimónias religiosas, os cumprimentos obsequiosos e constrangedores, os adereços excessivos da autoridade, as exigências rígidas da hierarquia, os compromissos artificiosos. E eu: qual é o lado mais cómico disto? Daí a fazer essa pergunta interior em qualquer situação dramática, foi um passo. A doença, a brutalidade, a estupidez, a intolerância, a maldade pura, a alucinação despótica – até o leito do sofrimento, o leito da morte. E eu: qual é o lado mais cómico disto?
Andava nessa altura a rir-me muito com as caras burlescas do cinema, não sabia que Shakespeare e Bergman existiam, ainda não tinha lido alguns livros trágicos e patéticos – e se soubesse que devia ter a faculdade de me rir de mim próprio, sabia-o sem o saber. Quando uma vez caí, a patinar no passeio com botas cardadas, e parti o dente da frente, fiz a pergunta calada e sacramental, enquanto as pessoas olhavam para mim: – Qual é o lado mais cómico disto?Quando a infância começou a ser perturbada por desentendimentos mais amplos com o real, insisti na defesa da minha alegria, do meu prazer de viver. E até na dor que retirava dos que amava (dos meus avós, das minhas velhas tias, por exemplo), e até na mor-te, que sempre me surpreendia, protegia-me com essa frase defensiva, essa armadura de sol, de chuva e de subir a escada a quatro e quatro.Creio que os cómicos do cinema me compreendiam melhor do que ninguém. Habitavam o coração do desastre com a desenvoltura, o corpo de borracha e a paciência evangélica dos grandes missionários da naturalidade."



Dinis Machado, Reduto Quase Final