Não vou voltar. Sei o caminho de cor mas aquele porto piscatório agora tem um horizonte de betão, o peixe já não cheira a fresco, ecoam ali demasiados relatos de naufrágios inusitados e por isso abandonei na rebentação as tuas histórias completamente inventadas.
Não vou voltar. Nunca apanho a sementeira. Chego e já a terra lavrada se cobriu pelo brotar do trigo. Chego e já alguém colheu e tudo está transformado num deserto e num silêncio onde não cresce nada, a água escorreu para o mar longínquo pelas artérias e veias da terra ora expostas à torreira do sol.
Não vou voltar. Essas tuas palavras, oiço-as desde sempre. Nunca as entendi. Quando tentei decorá-las, só para te agradar, elas magoaram-me com as suas esquinas por limar. Cortei as mãos com o teu papel na minha vida, já não sangro mas o meu espelho ainda vê as marcas.
Não vou voltar. Apetecia-me esse adro de igreja soalheiro. Eu deitada na pedra mármore no pino do Verão a sentir-me fresca enquanto passa a procissão da surpreendente genealogia. Orações em murmúrio para salvar o que se julgam serem restos de mim mas eu já caminhei por outros templos, por outras certidões de nascimento, por estações gélidas, já compus, cozinhei, pari, pedi, rezei, esqueci.
Não vou voltar. Deixo esta cartografia bizarra num baú no meio da sala não vá alguém precisar de se orientar, iniciar uma viagem que nunca foi a minha. Mapas e mapas sem escala, sem legenda. Latitudes e longitudes familiares, estranhas, intocáveis. A chave? Procurem mais a Sul, no Trópico de Capricórnio, enquanto, com a ajuda deste astrolábio futurista, vou rumando ao verdadeiro Ascendente sobre mim.
Não vou voltar. Essa colecção de lugares onde já fui infeliz não está ao alcance de todos. Custou-me cara demais para não a perder. Resisto a este íman que atrai o passado para o presente como se tivesse a absoluta certeza de que resistir é mais genuína forma de ser feliz.