Acordamos e temos trinta e tal, e muitos. Rumamos, numa carrinha, último modelo, ao monte de um colega de trabalho ou de um “casal amigo” no Alentejo. É o tempo das carrinhas familiares, dos “casais amigos”, dos filhos pequenos e barulhentos, das mulheres já com algumas enxaquecas. Ao volante olhamos de esguelha para a barriguinha e pomos os óculos escuros, de marca, que tudo disfarçam, até a careca. Há choros e gritos no banco traseiro. Há choros e gritos no quarto ao lado, no berço ali ao fundo. Na cama há um silêncio sepulcral interrompido pelo avisos clássicos do “estás a ressonar” e do “chega-te um bocadinho para lá”. Vamos então na carrinha, último modelo, no DVD o Noddy e no rádio, muito baixinho, os violinos de Mozart que há dez anos atrás eram ouvidos em stereo. Chegámos, fomos os últimos, a culpa não é da carrinha, último modelo, a culpa é dela que não se despacha porque as sandálias têm de condizer com o cinto e com o carrinho da mais nova. Para mim qualquer camisa que se veja a marca está boa. Chegámos então. Aos trinta e tal, trinta e muitos. Chegámos à casa de fim-de-semana dos colegas de trabalho, dos “casais amigos”. Lá estavam eles, os amigos, os casais amigos, os casais amigos dos casais amigos. Alguns indolentes no alpendre olhavam o verde, faziam as contas de quanto teria custado aquele sofá de exterior, estrutura em teka. Outros preparavam a mesa com o que trouxeram das respectivas lojas gourmet mais próximas. Dois deles tinham uma camisa de marca igual à minha o que me trouxe algum conforto. Deliciámo-nos com a remodelação do monte, com conjunto de teka e com petisco gourmet. Comparámos os empregos, os filhos, as mulheres, as roupas, os restaurantes, as férias, os metros quadrados dos apartamentos. Comparámos ainda as festas de casamento, os automóveis, discutimos hidromassagens, empregadas, spas, ginásios, melhores sítios para fazer festas de aniversário de criança. Respirámos fundo porque os pratos não eram de plástico e elas tiveram de ir lavar e arrumar tudo. Ficámos, como os nossos pais, como os nossos avós, com tempo livre delas e elas com tempo livre de nós. Por esta altura, quase ao pôr-do-sol, com o barulho de fundo das crianças entrámos em confidências, medimos virilidades, trocámos dicas, prometemos favores. Despedimo-nos efusivamente. Combinámos outros petiscos, fins-de-semana, viagens, até golf.
Acordamos e temos trinta e tal, e muitos. Rumamos numa carrinha, último modelo, a nossa casa, quase em Lisboa, num condomínio privado, piscina e ginásio, dois lugares de garagem, excelentes acabamentos. No caminho destilamos, sem querer, o fel de sermos o oposto do que nos prometemos há quinze anos atrás. Adormecemos as crianças, adormecemos no respectivo lado da cama e sonhamos que não temos trinta e tal, e muitos, que não temos carrinhas último modelo, nem casas em condomínios, nem Visas gold, cremes adelgaçantes ou camisas de marca. Descalços na margem de um riacho, trocamos promessas de amor eterno e respiramos cada verso lido em voz alta.
Baseado na crónica do José Luís Peixoto
Hoje, na revista Visão