Num destes dias, no metropolitano de Lisboa em plena hora de ponta de fim de tarde, viajei na mesma carrugem que uma senhora cega que se fazia acompanhar pelo seu cão-guia, um labrador delicioso cor de chocolate. Coincidiu sairmos no fim daquela linha, estação confusa, interface de outros destinos. Segui-os sem guardar qualquer distância como um bom detective rasca. Cuidadosamente o cão livrava-a de todos os males da plataforma: bancos, caixotes do lixo, publicidade encafuada em montras salientes. Infelizmente só não cumpriu com total sucesso a sua missão porque três pessoas chocaram com eles, três pessoas que andavam furiosamente em sentido contrário, alienadas ou enviando compulsivamente sms. Pessoas que não saltaram aquele obstáculo e ficaram indignadas ou surpreendidas pela incapacidade de ele se desviar. Depois as escadas, primeiro só uma opção, depois, no piso superior, o labrador conduziu-a de imediato às rolantes. À saida ambos cruzaram calmamente o portal mais largo não sem antes o cão-guia se ter sentado e forçado a companheira-dona a retirar o passe do bolso. Perdi-lhes o rasto mas aquela visão de fim de tarde guardo-a comigo. Estar atento, cuidar, observar o que nos rodeia. Simples e, contudo, raro.
sexta-feira, novembro 29, 2013
quinta-feira, novembro 28, 2013
terça-feira, novembro 19, 2013
uma borboleta
Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros,
e a poesia ou a litteratura uma borboleta que,
poisando na cabeça, me torne tanto mais ridiculo
Fernando Pessoa in Livro do Desassossego.
segunda-feira, novembro 18, 2013
Conta-me uma história
Há pouco lia este post do "Horas Extraordinárias" - o blog da Maria do Rosário Pedreira - que me transportou para a infância, para o tempo em que ainda não lia mas sabia de cor todos os livros infantis que existiam lá por casa. O meu pai, após dez horas de trabalho, chegava a casa cansado, uns dias desiludido, outros distraido, outros ainda ansiando um futuro tranquilo, sem obrigações ou pressões. Dizia, chegava a casa, comia qualquer coisa ligeira enquanto eu fingia dormir. Assim que ouvia passos no corredor, saltava da cama, carregada com o livro escolhido, e invadia o seu quarto adiando o momento de tranquilidade. Depois, já sentados na cama dele, lia devagar a história eleita, frequentemente as suas mãos eram sombras chinesas, o passe de mágica para cães, gatos, papagaios, fantasmas, avózinhas, soldados aparecerem nas paredes e no tecto. Havia dias que, extenuado, tentava encurtar as aventuras mas a minha memória das histórias, repetidas sem fim, atraiçoava-o.
É assim, talvez sem querer, que se planta num filho o amor pela leitura, pelo mundo ficcional que também é o nosso. Constato que só 2% das familias seguem ainda o exemplo do meu pai - e não digam que os tempos são outros: a atenção e a pedagogia são intemporais. Temo por isso pela língua portuguesa e pelas crianças que não fazem ideia que poderiam ser muito mais felizes.
É assim, talvez sem querer, que se planta num filho o amor pela leitura, pelo mundo ficcional que também é o nosso. Constato que só 2% das familias seguem ainda o exemplo do meu pai - e não digam que os tempos são outros: a atenção e a pedagogia são intemporais. Temo por isso pela língua portuguesa e pelas crianças que não fazem ideia que poderiam ser muito mais felizes.
domingo, novembro 17, 2013
Greve Geral às Segundas-Feiras
Greve geral
Logo de manhã apanho o autocarro para as nuvens
no largo que fica ao fundo da minha rua, com uma
árvore de cada lado da e corvos amarelos
na ponta de cada ramo. Quando entro, o motorista
pede-me o bilhete; mas não o encontro nos bolsos,
nem na carteira, nem no meio de todos os papéis
que levo nas mãos, e ele manda-me sair. "Como
poderei chegar às nuvens?", pergunto. E ele aponta
para o banco da paragem, onde está um grupo
de musas que passaram as noites nos bares, e
cabeceiam com o sono de terem andado de um
lado para o outro, sem descanso. "Sabem onde
se compra um bilhete para as nuvens?", pergunto.
E elas apontam para o guiché que continua fechado.
"É por isso que os autocarros saem vazios daqui"
diz uma delas na língua do Olimpo. Sento-me
ao seu lado, e escrevo um poema sem saber que é
ela que o está a ditar. Mas ela tirou-me
o poema das mãos e passou-o às amigas: "A qual
de vocês se destina este poema?" E cada uma delas
olhava para o lado, como se não tivesse nada a ver
com aquilo. Quando acordei estava sozinho,
as musas tinham-me levado o poema, e no vidro
da paragem tinham posto o aviso: "Não há
autocarros para as nuvens: dia de greve".
Nuno Júdice in Navegação de acaso, 2013.
sábado, novembro 16, 2013
As Horas Extraordinárias
Todo um ano cheio de horas extraordinárias. Agora, por incrível coincidência, cruzo-me comigo frequentemente ao anoitecer. Lá dentro há uma luz imensa, ganho coragem e espreito-me, parece acolhedor: mobília a contar histórias, quadros serenos, livros que se acotovelam nas estantes, alguém, entre janelas, prepara o jantar. Noto que retirei cortinas, no seu lugar violetas, amores-perfeitos, cíclames, sardinheiras.
(...)
E assim que volto ao meu lugar
reencontro com dor e com prazer
o coração que fiz falar
à máquina de escrever, a ver
ela a dar corda à máquina de amar
e um coração a se amainar, só
quando aparte o amor
eu me vi só
atirando a moeda ao ar
diz-me que cara ou coroa
eu vou ganhar
diz-me quanto eu fiz bem
em me apostar
e que bem fiz em ter por necessárias
as horas extraordinárias.
reencontro com dor e com prazer
o coração que fiz falar
à máquina de escrever, a ver
ela a dar corda à máquina de amar
e um coração a se amainar, só
quando aparte o amor
eu me vi só
atirando a moeda ao ar
diz-me que cara ou coroa
eu vou ganhar
diz-me quanto eu fiz bem
em me apostar
e que bem fiz em ter por necessárias
as horas extraordinárias.
terça-feira, novembro 12, 2013
entre amigos
Pequenos crimes entre amigos
Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.
Podes até queimá-lo –
com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.
Inês Dias in Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.
Se um dia me pedires,
juro que te empresto
o meu coração, tal como
guardei na boca o pequeno deus
que te trazia tão curioso.
A sério. Deixo-te tocar nele,
sentir-lhe o peso, atirá-lo
contra a parede para depois
o apanhares e retirares a pele
de pêssego demasiado maduro.
Podes até queimá-lo –
com cuidado, por favor –
quando estiver mais frio;
ou enterrares os restos debaixo
das estrelícias, de propósito
por saberes que não as suporto.
Em troca, promete-me apenas
que depois me deixas fugir
para saber como é isso de
passar o resto da vida desembaraçada
finalmente desse peso morto.
Inês Dias in Piolho, n.º 6, Edições Mortas/Black Sun Editores, Porto/Lisboa, 2011.
segunda-feira, novembro 11, 2013
Uma espreitadela
Para animar a vossa segunda-feira, vejam o que o britânico BANKSY, o artista do momento, andou a fazer por Nova York durante o mês de Outubro, numa espécie de atelier urbano undercover!
quinta-feira, novembro 07, 2013
Afogada em papéis
Reúno finalmente todos os meus papéis. Debaixo de água. Tenho esta dificuldade em facilitar a minha vida. Não é genético. Não é masoquismo. Não é possível. Reúno aqui os meus papéis na baía mais tranquila que encontrei. Anémonas iluminam as estrofes, as metáforas, os espantos. Desfaz-se a prosa poética na corrente mais ao fundo. Um cardume de salemas embate de frente no meu sonho de publicar. Aqui ninguém se magoa, tudo flui. Prossigo com as longas barbatanas azuis para uma rocha vizinha onde, espantados, dois olhos de qualquer coisa que por ali habita acham-me a mais pura ficção científica. Descanso, reescrevo, encurto, admiro, desprezo. As algas empanturram-se desta sopa de letras. Linha a linha segue, já um pouco cansada, a minha escrita reunida e diluída. Subitamente, a sintaxe medíocre deixa-nos - a mim e à garrafa - sem ar. Lá em cima o casco do barco, o sol. Aqui em baixo, já um pouco arroxeada, eu reunindo finalmente os meus papéis.
quarta-feira, novembro 06, 2013
Como um idiota responsável
No metro, em pé, ainda a acordar no abafo subterrâneo
da manhã. Repórteres cansados de uma realidade
que passa por nós em diferido e só acaba gravada
nos álbuns de viagens dos estrangeiros
que nos apanham nestas rotinas de segunda classe
quando engolimos os piores, mais espessos silêncios.
Tão depressa penso em nada como já sei tudo.
Quis ser estrela de rock, actor de cinema,
todos os sonhos mais baratos já foram para a cama comigo.
Depois, como putas sem alma, deixaram-me
a falar sozinho. Agora ajeito-me à ideia
de vir a ser um advogado. E que triste vou ser.
(Chego à minha paragem, volto à superfície
e os passos destrocam-se até chegar à Faculdade.)
Só me inspiram os escritores que regressam a casa
constantemente debaixo de chuva – mesmo que não chova –
acompanhando sombras migratórias
contra um placard que cospe sequências animadas
em technicolor. É bom saber que somos muitos,
nós que temos a vida engasgada entre golpes
publicitários. Já viste o novo da Super Bock?
(Uma aula, duas, três... Foda-se.)
Deixaremos a morte reduzida a escrito, convulsa,
com todos os finais prováveis, inglórios, mas
razoavelmente musicados. Sem surpresas,
alguma avaria no engenho explosivo a que chamámos
coração, essa fraude mediática. O meu,
mergulho-o no óleo da fritadeira, deixo-o alourar
– para mim quero um enfarte amoroso, mesmo que
tenha de lá chegar por excesso de colesterol.
(Hora de almoço. E agora o que é que me apetece?)
Quando nada me move, a caneta vai-me desapontando,
a colher a mexer o café, afogando um mosquito.
Li uns vinte e cinco poemas à hora do almoço
enquanto escrevia notas nas costas das mãos
– mais outro texto que só poderá dar em nada
com toda esta sucata que encalha nos meus versos.
Mutilo-me, deixo-me ir ao chão, fabrico
próteses, levanto-me e sento-me novamente,
reescrevo-me, emendo a estupidez dos deuses.
Daqui a nada pago a conta, vou ao W.C.,
tento urinar nos limites da sanita (cuidados
que «a gerência agradece») e depois volto às aulas
como um idiota responsável.
P. S.: Não leias este uma segunda vez, amanhã é igual.
Diogo Vaz Pinto in Resumo: A poesia em 2011 [de Nervo], organização de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2012
da manhã. Repórteres cansados de uma realidade
que passa por nós em diferido e só acaba gravada
nos álbuns de viagens dos estrangeiros
que nos apanham nestas rotinas de segunda classe
quando engolimos os piores, mais espessos silêncios.
Tão depressa penso em nada como já sei tudo.
Quis ser estrela de rock, actor de cinema,
todos os sonhos mais baratos já foram para a cama comigo.
Depois, como putas sem alma, deixaram-me
a falar sozinho. Agora ajeito-me à ideia
de vir a ser um advogado. E que triste vou ser.
(Chego à minha paragem, volto à superfície
e os passos destrocam-se até chegar à Faculdade.)
Só me inspiram os escritores que regressam a casa
constantemente debaixo de chuva – mesmo que não chova –
acompanhando sombras migratórias
contra um placard que cospe sequências animadas
em technicolor. É bom saber que somos muitos,
nós que temos a vida engasgada entre golpes
publicitários. Já viste o novo da Super Bock?
(Uma aula, duas, três... Foda-se.)
Deixaremos a morte reduzida a escrito, convulsa,
com todos os finais prováveis, inglórios, mas
razoavelmente musicados. Sem surpresas,
alguma avaria no engenho explosivo a que chamámos
coração, essa fraude mediática. O meu,
mergulho-o no óleo da fritadeira, deixo-o alourar
– para mim quero um enfarte amoroso, mesmo que
tenha de lá chegar por excesso de colesterol.
(Hora de almoço. E agora o que é que me apetece?)
Quando nada me move, a caneta vai-me desapontando,
a colher a mexer o café, afogando um mosquito.
Li uns vinte e cinco poemas à hora do almoço
enquanto escrevia notas nas costas das mãos
– mais outro texto que só poderá dar em nada
com toda esta sucata que encalha nos meus versos.
Mutilo-me, deixo-me ir ao chão, fabrico
próteses, levanto-me e sento-me novamente,
reescrevo-me, emendo a estupidez dos deuses.
Daqui a nada pago a conta, vou ao W.C.,
tento urinar nos limites da sanita (cuidados
que «a gerência agradece») e depois volto às aulas
como um idiota responsável.
P. S.: Não leias este uma segunda vez, amanhã é igual.
Diogo Vaz Pinto in Resumo: A poesia em 2011 [de Nervo], organização de Armando Silva Carvalho, José Alberto Oliveira, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas, Documenta/Fnac, Lisboa, 2012
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