quarta-feira, novembro 22, 2006

Pai


Tenho quase a certeza que o meu pai me mente quando diz que é meu pai. Descobri essa quase verdade quando, depois de dizer as primeiras duas sílabas de quase todas as palavras, caminhei pela primera vez, não sobre as águas, mas sobre a alcatifa verde, que forrava o imenso corredor, que me conduzia sempre ao quarto deles. A porta estava fechada mas a ânsia de lhe mostrar que era assim uma pequena deusa que andava venceu todas as portas e paredes que poderiam estar à minha frente. A dura realidade revelou-se e eu guardei a experiência traumatizante de sentir crescer na minha testa um galo enorme enquanto o meu pai se ria perdidamente! No meu imbérbe, mas sério, conceito de familia sabia que um pai não se deve rir de um filho numa situação daquelas. Depois surgiram os biberons de leite com chocolate dos quais não conseguia abdicar e que ele insistia em não os acertar na minha boca. Um pai deve saber dar comida a um filho. Depois seguiu-se ainda o silêncio, os seus desenhos irritantemente precisos espalhados por toda a casa, as matinés de sábado a darmos sentido a peças de lego ou a construirmos puzzle, a música que não entendia e o riso, sempre o riso.
Agora também gosto de fazer puzzle e legos e rio muito dos seu óculos em meia-lua tantas vezes esquecidos dentro do lavatório. Rio porque o meu conceito maduro, e sério, de familia contém os defeitos com o riso infindável de nós. Às vezes desconfio que ele é meu pai porque os seus olhos são atraiçoados por aquele sorriso carinhoso, porque me lembro das histórias que me lia, sempre as mesmas, pela noite, e das sombras que desenhava com as mãos naquela parede enorme e, nessas alturas, as gravuras passeavam descaradamente pela sala e os animais na parede relinchavam, cacarejavam, miavam ou ladravam numa algazarra infernal. Só nós os dois viamos e ouviamos…No outro dia surpreendi-o, no meu antigo quarto, a falar com seriedade para um pinóquio de madeira ignorado há anos. Talvez ele seja mesmo meu pai...

1 comentário:

Anónimo disse...

Se não é, merece ser...
Valeu a pena esperar pelo prometido texto sobre o pai.
Molto bello. Bravissimo ragazza!