Alívio Rápido
A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.
Carlos Bessa in Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007.
1 comentário:
"Morre-se tanto à espera da sorte grande"...
..."Estar atento, cuidar, observar o que nos rodeia. Simples e, contudo, raro."
Duas postagens, um mesmo importante tema, que metaforicamente poderia ser dito na primeira frase de hoje: "A idade da poesia cedo nos abandona".
Portanto, o ouriço-cacheiro nos brindou com um "guia rápido" cujo alívio só se dará na aprendizagem de se abrir sensivelmente aos corações que não fazem ginástica. Bravo!
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