Há dias em que, ao acordamos, tudo nos parece resolvido. O mundo é totalmente redondo, sem arestas, despoluido, fluido. As leis da física e da quimica estão socialmente concertadas, o sol não queima, bronzeia. O metropolitano foi finalmente alvo de um exodo e de um banho perfumado. Conseguimos, na aula matinal, alongar o suficiente para tocarmos com as mãos, ainda que ao de leve, no que está certo. Recompomo-nos num vestido que nos assenta na perfeição, dizemos o que sempre quisemos e o medo esvai-se a cada sílada. Estamos então preparados para seguir um trilho que aprendemos a desbravar, um trilho que só nós sabemos percorrer, sem encruzilhadas, lombas ou buracos, um trilho verdejante, sinuoso, silêncioso e sereno que conduz ao nosso epicentro, que devolve, a cada passo, toda a liberdade que sempre nos pertenceu.
quarta-feira, junho 26, 2013
domingo, junho 16, 2013
Antes
Antes do amanhecer (1995), Antes do Anoitecer (2004), Antes da Meia-Noite (2013). Completa já a triologia que explica como a minha geração poderá chegar (in)feliz aos quarenta. Dos três este último parece-me o melhor: os longos diálogos refinados afastando estereotipos, desconcertando instituições, destruindo e reconstruindo a felicidade do quotidiano. Não sei se no fim tudo acaba bem porque a vida continua e porque, na verdade, o fim está longe. Há ainda um enorme caminho a percorrer, tropeçando, saltitando, contemplando e, sobretudo e sempre, aprendendo. Em 2025 prevejo um "Antes do Meio-Dia", no qual será relatado o impacto do síndrome do ninho vazio sobre o casal Celine-Jesse e a obsessão de uma das personagens pela hora do almoço. Já em 2036, a temática do envelhecimento a dois será esmiuçada sob o elucidativo titulo " Antes que nos esqueçamos".Querem apostar?
quando eu tiver setenta anos
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.
Paulo Leminsky, Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando acabar esta adolescência.
Paulo Leminsky, Caprichos e relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1985.
quarta-feira, junho 05, 2013
Fazer a noite
Nós fizemos a noite.
Acordado eu tomo a tua mão
nutrindo-te com todas as minhas forças
gravo na rocha a estrela da tua energia
com linhas profundas
onde a bondade do teu corpo germinará.
Repito a tua voz escondida
a tua voz anunciada.
Ainda gracejo da orgulhosa
que tu tratas como uma pedinte
dos malucos que respeitas
dos simples em quem te deleitas
E na minha cabeça que pouco a pouco se une à tua e à noite
fico maravilhado de tal mistério
tão parecido contigo e com tudo que amo
o que é continuamente invulgar.
Paul Eluard, poema extraído do tema intitulado “ Olhos férteis”
- 1936-
- 1936-
segunda-feira, junho 03, 2013
retomo-me
Os dias começam com pedras da calçada sob os meus pés. Um puzzle indizível que confunde o sono com que ainda olho para a vida àquela hora. Está tudo calmo, oiço cá dentro o coração quase a sair pela boca. Espreita os poucos que passam, cansados, esperançosos, preocupados, pensativos, distraídos. Há praças e fontes e avenidas suficientemente grandes e vazias para que eu chegue ao limite permitido pelas pulsações meio descompassadas, meio descompensadas. Em brechas de azul vejo aviões sobrevoando os primeiros raios de sol, imagino onde irão assim, tão apressados, àquela hora. E logo uma rabanada de vento em contramão me alerta para esse caminho aleatório, mais uma travessia transgressora, mais um recorde batido. Alongo a preguiça, tento entender o que gritam os meus quadris ou de que se queixa o joelho direito. Retomo o quotidiano a lembrar-me das persianas ainda fechadas, do cheiro das padarias que finalizam o expediente, da delicadeza das árvores, da frescura com que ando aprender a amanhecer. Retomo-me assim mais um pouco, impreterivelmente, todos os dias.
domingo, junho 02, 2013
o equivoco da vitória
A nossa vitória de cada dia
Olhe para todos ao seu redor e veja o que temos feito de nós e a isso considerado vitória de cada dia. Não temos amado acima de todas as coisas. Não temos aceite o que não se entende porque não queremos passar por tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos um ao outro. Não temos alegria que não tenha sido catalogada. Temos construido catedrais, e ficado do lado de fora pois as catredais que nós mesmo contruímos, tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga e nós a tememos.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro de nós que por amor diga: tens medo. Temos organizado associações e clubes sorridentes onde se serve com ou sem soda. Temos procurado nos salvar mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer a sua contextura de ódio, de amor, de ciúme e de tantos outros contraditórios. Temos mantido em segredo a nossa morte para tornar a nossa vida possível. Muitos de nós fazem arte por não saber como é a outra coisa. Temos disfarçado com falso amor a nossa indiferença, sabendo que nossa indiferença é angústia disfarçada. Temos disfarçado com o pequeno medo o grande medo maior e por isso nunca falamos no que realmente importa. Falar no que realmente importa é considerado uma gaffe.
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'
Não temos adorado por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido puros e ingénuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer «pelo menos não fui tolo» e assim não ficarmos perplexos antes de apagar a luz. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso consideramos a vitória nossa de cada dia.
Clarice Lispector, in 'Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres'
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