quarta-feira, março 06, 2013

O rosto



Por aqueles dias estava José em casa sozinho ao final do dia. A mulher tinha ido a uma consulta lá para Lisboa, tão doente coitada, e ele preparava-se para ver o seu programa favorito antes do telejornal. Na cozinha, onde improvisara uma sala com a poltrona poida que tanto amava, alinhavava o jantar, cozinhar era coisa de homem e ele fazia-o desde os tempos em que dera por si responsável por alimentar um rancho de irmãos órfãos. Iscas de cebolada. Quase a terminar o tempero, ouviu um estrondo no andar de cima. Era Inverno, alguém, com pressa deixara uma janela mal fechada. Se entra chuva, lá se vão as madeiras. E elas custaram caro. Enérgico, com fama e proveito, sobe a escadaria alcatifada num ápice e entra no quarto onde supunha tivesse vindo o barulho. Corre para a janela, estava fechada. De soslaio repara agora na porta do guarda-fatos escancarada e em parte do seu conteúdo espalhado pelo chão. A sua infundada certeza surpreendera-o tal como Ruben, em pânico, que o esperava atrás da porta. José não deixaria passar. Trabalhara duramente toda a vida, sujeitou-se a muitas humilhações e sacrifícios, combatera na selva africana, construiu aquela casa com as suas próprias mãos, casara as duas filhas com homens humildes mas trabalhadores, tinha o seu programa favorito à espera. Não, não e não! Ao virar-se cruzou o olhar com o assaltante, odiou-o tanto quanto o seu coração permitia. Ruben cruzou o olhar com José, um homem enorme, cheio de ódio e de vontade. Tentou escapar-lhe com a destreza de que se gabava mas, ao perceber que seria impossível, sacou da naifa e, de imediato, desferiu todas as facadas que o medo permitiu. José atordoado pela dor, afogou-se no seu sangue e guardou, já emudecido, a ultima imagem de Ruben escapulindo pela janela.
Seguiram-se os espectáveis episódios, espanto, horror, dor, médicos, polícias e toda a parafernália de homens e instrumentos para trazer de volta o que ficou na retina de José. A verdade transforma-se em suposição, a indignação em mistério, as palavras em autos, o sangue em relatório, a casa em fotografias, a janela aberta e os telhados contíguos em solução.
Ruben foi um nome pronunciado mais tarde, depois de muitas horas de olhos abertos imaginando José e a sua surpresa, José e a sua luta inglória, José e a dor de saber sem ter tempo para denunciar. Depressa o nome de Ruben se transformou também num relatório. Num dia ensolarado, foram buscá-lo à liberdade à qual tão cedo não voltaria.
O alívio invadiu aquela filha, trabalhadora e humilde, que logo soube do fim do mistério, da confissão, da detenção. Herdeira dos azulejos, da alcatifa e da bondade do seu pai, veio transformar mais palavras em peças processuais. Esta obrigação nada era comparada com a vontade de agradecer as horas de olhos abertos que encarceraram aquele nome. Estava agora perante o rosto da Justiça divina que reencaminhara o destino para a dos Homens. Estava perante aquele rosto tímido e desconcertado com a emoção do agradecimento. Aquele rosto vulgar, imune à dor na esperança que daí brotasse clarividência. Estava perante aquele rosto e aquele rosto era o meu.

2 comentários:

Urso Polar disse...

Standing ovation!

Filomena Chiaradia disse...

Que venham muitos outros rostos...belíssima narrativa, uau!