sexta-feira, maio 18, 2012

Não há razão para tanta preocupação

Desde Outubro tenho-me imposto novos hábitos: reduzir os telejornais ao mínimo, saber o estritamente necessário para manter, até quando for preciso, uma conversa civilizada circunstancial sobre a realidade do país e do mundo. O mesmo raciocínio vale para o extracto de conta. Aposto na leitura pontual dos jornais e aperto a seleccão dos cronistas. O meu índice de felicidade disparou, agora quase roça a total alienação enquanto me perco em séries, filmes, livros, espécies de peixes e as sardinheiras floridas da minha varanda. Oiço as conversas preocupadas e pessimistas e penso que um dia destes o segurança me vai barrar a entrada alegando que alguém assinou por mim um acordo que me cuspiu irremediavelmente da função pública, esquecendo-se de pôr qualquer compensação no bolso. Nesse mesmo dia, depois de estar a aproveitar a vida numa esplanada junto ao mar, irei ao multibanco levantar uns escudos da poupança para pagar um qualquer delicioso gelado artesanal e fá-lo-ei repetidamente até os gelados custarem milhares e milhares de escudos e o boneco quadrado irritante deixar cair os cantos da boca e me informar da falta de permissão do saldo para a gulodice. Sem dinheiro, sem emprego e sem gelado vou dedicar-me à troca directa com os velhinhos do meu bairro - os que sobreviverem à falta de escudos para a medicamentação - e trabalhar a imaginação para a produção caseira de energias alternativas algures entre o wc e as correntes de ar das janelas. Acalma-me a ideia de que nos buracos da ruas de Lisboa crescerão pequenos e adoráveis malmequeres e que, de todos os carros estacionados, por falta combustível e manutenção, surgirão estufas improvisadas com ervas aromáticas, tomates e outros produtos hortícolas essenciais à subsistência dos seus donos. Esquilos, alces, ouriços-cacheiros e a verdadeira fauna autóctone da região tomará as ruas pacificamente. Deixarei de querer ir a algum lado porque tudo implica muita troca e muito esforço e na altura já não será preciso combater com exercício a obesidade, os diabetes, a tensão alta e todas as maleitas possíveis decorrentes da ingestão desgovernada de hidratos de carbono. A praia será um Tejo translúcido e o campo um bucólico e longínquo Lumiar. Imagino-me, enquanto as dioptrias permitirem, a ler finalmente todos os livros que sempre sonhei e que, por ora, repousam entediados nas estantes deste mundo. Oiço assim as conversas e penso que não há razão para tanta preocupação.

1 comentário:

Urso Polar disse...

E como não podes telefonar a combinar previamente um encontro, fazes uma caminhada até ao vizinho polar e bates à porta de surpresa: "Ah!, já não nos víamos há tanto tempo... anda daí por a conversa em dia". E ao cair da noite, encetas a caminhada de regresso, passeando por entre as estufas da Renault, Mercedes, Audi...