Inês e Pedro: quarenta anos depois
É tarde. Inês é velha.
Os joanetes de Pedro não o deixam caçar
e passa o dia todo em solene toada:
«Mulher que eu tanto amei, o javali é duro!
Já não há javalis decentes na coutada
e tu perdeste aquela forma ardente de temperar
os grelhados!»
Mas isto Inês nem ouve:
não só o aparelho está mal sintonizado,
mas também vasto é o sono
e o tricot de palavras do marido
escorrega-lhe, dolente, dos joelhos
que outrora eram delícias,
mas que agora
uma artrose tornou tão reticentes.
Inês é velha, hélas,
e Pedro tem caibras no tornozelo esquerdo.
E aquela fantasia peregrina
que o assaltava, em novo
(quando as chama era alta
e o calor ondeava no seu peito),
de ver Inês em esquife,
de ver as suas mãos beijadas por patifes
que a haviam tão vilmente apunhalado:
fantasia somente,
fulgor que ele bem sabe ser doença
de imaginação.
O seu desejo agora
era um bom bife
de javali macio
(e ausente desse horror
de derreter neurónios).
Mais sábia e precavida
(sem três dentes da frente),
Inês come,
em sossego,
uma papa de aveia.
poema de Ana Luisa Amaral
1 comentário:
Oh :S, bonito, bonito é o poema das batatas.
http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Ana_Luisa_Amaral.htm#Testamento
:D
Jinhos.
P.S. Ah, para sempre nunca é muito tempo, é sempre pouco, na realidade para sempre nunca é o bastante. Coisas... ;)
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