quinta-feira, dezembro 19, 2013

Contas certas

 
Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
 
Millôr Fernandes in Poesia Matemática

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Caro


A multidão acotovela-se, carinho natalício praticamente sincero com promoção de até 50% . E eu por aqui, tentando escrever e enganar o sono com os meus óculos de 4 €. Acho que a compaixão este ano está até 70%, vejam só, anunciava-se página inteira daquele jornal gratuito. Assim esgota-se num instante. E eu aqui parada, a escrever, auxiliada pelos meus óculos de 4 €, armação irrepreensível, lentes com uma dioptria cada. Por esta hora embrulham-se, em longas filas, azedumes e invejas, laçarotes de veludo, embalagens atractivas mas, infelizmente, não recicláveis. É preciso tirar a senha, esperar com uma paciência sem qualquer promoção, só lá para meio de Janeiro talvez lhe retirem 20% no máximo. Quantas pessoas foram exploradas para eu pagar 4 € por uns óculos numa loja clean de origem nórdica? Reparo que no fim do túnel há finalmente umas luzes led de Natal. Feitas exactamente no mesmo sítio que os meus óculos. Mais quinze dias, se tudo correr como habitual, e regressa a escuridão. Pensando bem, 4 € nunca custaram  tão caro.

Too big

 
 
Too big to fail

Como pode um investimento tão fiável
garantir este rendimento crescente, numa
diária distribuição de beijos e outras mais-
-valias, ainda por cima livres de impostos?

Embora confiasse na tua competência
para criar valor, confesso que não esperava
tanto quando decidi aplicar nos teus títulos
... sensíveis aos meus parcos activos emocionais.

O mais estranho, no mundo actual, é ser este
um negócio sem perdedores, aparentemente
imune ao nervosismo das tuas acções
ou às flutuações do meu comércio libidinal.

O meu único receio é que despertemos
a inveja dos deuses, no Olimpo de Bruxelas,
e que Mercado, o monstruoso titã, decida
baixar para lixo o rating da nossa relação,

deixando-nos sem crédito na praça romanesca
e em default o coração. Mas não sejamos
pessimistas. Aliás, ambos sabemos que Cupido
nos ampara com a sua mão invisível. E mesmo

que entrássemos ambos em depressão, tenho
a certeza de que o Estado português nos daria
todo o apoio, concordando que um amor como
este é simplesmente demasiado grande para falir.


José Miguel Silva, 2011

segunda-feira, dezembro 02, 2013

Alívio rápido

Alívio Rápido


A idade da poesia cedo nos abandona.
A prosa, pelo contrário, vai-se tornando imperativa,
obriga-nos às flexões da fala e encobre,
com elas, possibilidade tão bela, tão nobre.
Como se falar fora maneira de transformar
o menos em muito, e assim em paz com os sonhos
e com menos ânsias nos dedicássemos
à arquitectura das grandes causas,
a família, o emprego, as heranças.
Morre-se tanto à espera da sorte grande.
Por isso, quando dizes amanhã todo eu me esforço
por não cair no mau teatro dos cúmulos,
o do forno, o da panela ao lume. Mas, confesso,
as palavras enchem-se de crude e empoladas
e vulgares, nesse tom tão rente ao risível,
não dizem, planam, afectadas, vazias.
Só depois me lembro que o amanhã é próprio
da meteorologia e que esperar
foi sempre um propósito digno. Mais não seja
porque o coração precisa de uma ginástica
rude, que o endureça e torne elegante.


Carlos Bessa in Dezanove Maneiras de Fazer a Mesma Pergunta, Teatro de Vila Real, 2007.