quarta-feira, maio 29, 2013

tonto


Devo ser um pouco tonto

porque às vezes dou por mim a falar sozinho
e digo coisas malucas,
digo nomes bonitos de miúdas e barcos
ou títulos de livros que ninguém escreveu.
Devo ser um pouco tonto.

Babo-me, grito e choro.
Os verbos absolutos enchem-me de ternura
e essas vogais soltas, inúteis, redondas,
que voam para nada,
elevam-me boquiaberto a não sei que gozos.

Sou feliz e, por isso, também um pouco tonto.


 Gabriel Celaya

sexta-feira, maio 24, 2013

De acordo



Para tomar balanço para o fim de semana, talvez uma das melhores letras da música portuguesa dos últimos tempos!

quinta-feira, maio 23, 2013

Simples


quero de ti o que for simples
um aceno, um postal
o teu nome numa concha
ter apenas isto: um banco de jardim
onde te esperar e esperar.
Vasco Gato

terça-feira, maio 21, 2013

Não estou a ver


Queixas de um utente

Pago os meus impostos, separo
o lixo, já não vejo televisão
há cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.

Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.

José Manuel Silva in Ulisses já não mora aqui & etc


segunda-feira, maio 20, 2013

A felicidade como acto de resistência*



Não vou voltar. Sei o caminho de cor mas aquele porto piscatório agora tem um horizonte de betão,  o peixe já não cheira a fresco, ecoam ali demasiados relatos de naufrágios inusitados e por isso abandonei na rebentação as tuas histórias completamente inventadas.
Não vou voltar. Nunca apanho a sementeira. Chego e já a terra lavrada se cobriu pelo brotar do trigo. Chego e já alguém colheu e tudo está transformado num deserto e num silêncio onde não cresce nada, a água escorreu para o mar longínquo pelas artérias e veias da terra ora expostas à torreira do sol.
Não vou voltar. Essas tuas palavras, oiço-as desde sempre. Nunca as entendi. Quando tentei decorá-las, só para te agradar, elas magoaram-me com as suas esquinas por limar. Cortei as mãos com o teu papel na minha vida, já não sangro mas o meu espelho ainda vê as marcas.
Não vou voltar. Apetecia-me esse adro de igreja soalheiro. Eu deitada na pedra mármore no pino do Verão a sentir-me fresca enquanto passa a procissão da surpreendente genealogia. Orações em murmúrio para salvar o que se julgam serem restos de mim mas eu já caminhei por outros templos, por outras certidões de nascimento, por estações gélidas, já compus, cozinhei, pari, pedi, rezei, esqueci.
Não vou voltar. Deixo esta cartografia bizarra num baú no meio da sala não vá alguém precisar de se orientar, iniciar uma viagem que nunca foi a minha. Mapas e mapas sem escala, sem legenda. Latitudes e longitudes familiares, estranhas, intocáveis. A chave? Procurem mais a Sul, no Trópico de Capricórnio, enquanto, com a ajuda deste astrolábio futurista, vou rumando ao verdadeiro Ascendente sobre mim.
Não vou voltar. Essa colecção de lugares onde já fui infeliz não está ao alcance de todos. Custou-me cara demais para não a perder. Resisto a este íman  que atrai o passado para o presente como se tivesse a absoluta certeza de que resistir é mais genuína forma de ser feliz.


*Titulo do Jornal Público de 02.05.13 a propósito do lançamento do novo cd da Márcia

sexta-feira, maio 17, 2013

Descobertas luminosas partilháveis


Vim porque me pagavam

Vim porque me pagavam,
e eu queria comprar o futuro a prestações.

Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos da Páscoa e pulseiras
de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quantos mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficaram na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.

Com estas mãos levantei a poeira
com que agora cubro os nossos corpos.

Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.

Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa;
e que bonito me fica a esperança
enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.

Golgona Anghel in Vim porque me pagavam, Mariposa Azual, 2011



Pensar de olhos abertos

Estava aqui no trabalho ouvindo um debate na rádio sobre a coadopção por casais homossexuais. Hoje deu-me para isto... É sexta-feira. Bom, loucura à parte, fico sempre transtornada pelo atraso civilizacional da sociedade portuguesa, mais pelo atraso civilizacional da elite instruida que opina sobre questões como esta. Demorei muito tempo a concluir inequivocamente pelo sim a esta medida. Andei muitos destes quase 40 anos com os olhos abertos tentando perceber o que aconteceu à sexualidade de gerações e gerações criadas só por mulheres,  a crianças sadicamente maltratadas pelos seus próprios pais,  a crianças sozinhas em casas cheias de gente mas vazias de afecto, ouvindo pessoas com infinita capacidade de julgar os outros, pessoas que não conhecem as óbvias fronteiras entre a teoria e a prática, pessoas agarradas inequivocamente a estigmas ficticios e a estudos falseados. A argumentação está embebida pela moral e a moral, por sua vez, está contaminada pelo lado humano que corrompe a religião. Não importa discutir o lobby gay no Parlamento ou as trocas de fluidos politico-ideologicos de bastidores. Resta só saber se continuamos a subir ou se acampámos sine die neste planalto árido, abrigado da felicidade pelo estereotipo inútil e pela normalidade hipócrita.

terça-feira, maio 14, 2013

Tantas vezes


O que tantas vezes me apetece dizer-lhe.

Repara bem no que não digo.”
Paulo Leminski

Domingo a tomar conta do mundo

Clarice Lispector in "A descoberta do mundo"

Uma ida à Fundação Gulbenkian num domingo de sol implica passear num jardim feliz, ver crianças livres e casais apaixonados, almoçar numa esplanada lotada, virada para um lago pejado de juncos, nenúfares e patos efusivos, ver exposições gratuitamente e depois ficar a pensar nelas. Enfim, um fardo a que já nos habituámos.

Logo à entrada da Exposição sobre a Clarice Lispector deparamo-nos com uma declaração de amor:

"Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às vezes a galope.
Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos dar para sempre uma herança da língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida."

quarta-feira, maio 08, 2013

Intolerando a tolerância


Há pequenas subltilezas, pormenores, ângulos muito agudos ou muito obtusos, esquinas tão fáceis de dobrar que nos convencem que andamos em linha recta. A tolerância é uma delas. Aprendi a detestá-la com a vida, com o Fernando Alves que aprendeu com o Saramago, com o Boaventura Sousa Santos que também deve ter aprendido com o Saramago. É possível aprendermos muitas coisas com o Saramago. Passar a desconfiar da tolerância é uma delas, talvez a mais importante.

sexta-feira, maio 03, 2013